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VOTOS Renato Valle




Capa

Imagem da capa: VOTOS – Renato Valle, 2025. Livro. 200 páginas: 22 por 31 centímetros. Audiodescrição: Imagens selecionadas da obra Diário de votos e ex-votos, 2003 – 2005, com cinco mil desenhos em grafite sobre papéis de 5 por 5 centímetros, cada. Há vinte e quatro imagens dispostas em seis linhas e quatro colunas. Acima das duas imagens centrais das segunda e terceira linhas, têm as letras brancas e maiúsculas: “V”, “O”, “T” “O”, “S” na última imagem da quarta linha – juntas formam o nome do livro: “VOTOS”. E sobre a terceira imagem da quinta linha, está escrito: “Renato Valle”. Na primeira linha, da esquerda para a direita, há uma boca carnuda e um queixo de perfil para a esquerda; parte de um rosto com dois olhos grandes e bolsas de olheira, o esquerdo com a íris branca e o outro preta e um nariz grande em formato triangular; um feto disforme com olhos malformados e assimétricos, com braço pequeno, sem a mão e uma coluna vertebral que vai da altura das costas até o pé; e um homem disforme com os braços abertos – ele é careca, tem os braços grossos e cilíndricos com as extremidades arredondadas, pelos pubianos acima de um pênis caído e pernas finas e cilíndricas com as extremidades arredondadas. Na segunda linha há os ossos da bacia; o rosto oval de uma mulher com os cabelos lisos e pretos repartidos no meio e o “V” sobre ela; ao lado, a letra “O” está sobre uma mão com dedos grossos e punho fechado; uma cabeça é retangular e calva, de perfil para a esquerda, com o rosto disforme, olho pequeno, nariz triangular enorme e espinhas na bochecha. Na terceira linha há um homem de braços abertos com os polegares para cima, tem cabelos curtos, braços e pernas grossos e veste camiseta listrada e short escuro; na sequência, duas cabeças irregulares com os rostos escuros com o “T” e o “O” sobre elas; e uma bunda volumosa.Na quarta linha há os ossos do pé; um busto com dois seios iguais, redondos e empinados com auréolas escuras; a ponta de um dedão com a unha cortada; e uma cabeça escura de perfil para a esquerda com o “S” sobreposto. Na quinta linha há um homem nu, de costas, com os braços abertos. Ele tem cabelos pretos e curtos, braços e mãos grossos, bunda saliente e pernas grossas; outro homem, com o topo da cabeça reta, olhos esbugalhados, corpo retangular, barriga protuberante, costelas aparentes, genitália pendurada entre as pernas afastadas e feridas nas canelas; depois, um desenho oval e escuro com “Renato Valle” em destaque; e vários ossos da costela que lembram um esqueleto de peixe, alguns na horizontal ligados ao osso vertical da coluna. Na última linha há um menino sério, com traços finos, usando um capelo na cabeça; depois, um dente com partes escuras e carcomidas; uma mulher séria de cabelos lisos, rosto fino, olhos pequenos, nariz longo, boca pequena e seios grandes com uma camiseta estampada; e, por fim, um homem de perfil para a esquerda, com cabelos curtos, sobrancelha fina, uma bolsa de olheira abaixo do olho, boca pequena e bochecha enorme.



Folha de rosto

VOTOS - Da obra de Renato Valle, religiosidade e política - Bruno Albertim
Recife, 2025

Realização: Todé em arte: quase tudo.

Incentivo: Funcultura, Fundarpe, Secretaria de cultura, Governo do Estado de Pernambuco



SUMÁRIO


Capa

Folha de rosto

O monge milita Apresentação - Diogo Dobbin - Todé

Expurgos – Capítulo 1

Do gesto-monumento – Capítulo 2

Bandido bom é bandido exposto – Capítulo 3

Bananas,
caramelo, ordem e progresso – Capítulo 4


Quase ateu
– Capítulo 5


Bibliografia

Equipe e expediente
Renato Valle - Coordenador artístico
Bruno Albertim - Escritor

Diogo Dobbin – Todé - Editor-chefe e produtor
V O T O S, somos:

Governo do Estado de Pernambuco

Colofão









O monge milita Apresentação - Diogo Dobbin - Todé


Texto expositivo: Incauto, alguém pode perceber que documentar a relação de Renato Valle com o tema deste livro deva ser redundante. A sua relação com religiosidade e política é intrínseca à sua obra, presente desde antes da primeira produção artística. Em meio século de trajetória, sua crença e sua ética se manifestam em gestos, atos e coisas. São estas coisas que nos interessam aqui, estas coisas, a crença n´algo que é físico, tem aura e incorpora e produz discurso.
Em texto sobre a série Amós Votos Hieronymus, de 2011, Valle descreve o desenho como necessidade vital, “é como andar, me mover, usar um músculo qualquer do meu corpo ou puxar o ar pra respirar, difícil viver sem desenhar”. Como os atos manifestos, inexoráveis aos seres humanos, seu desenho também seria sua sociabilização, desejo, cultura, sua política e religião? Sua religiosidade é companheira constante, que ilumina. Já sua fé fez eloquente o tímido, capaz de expressar mundos e formas “falando de algo que a escrita ou o verbo não bastam”. Um animal político que prega a palavra da sua fé no desenho.

Renato Valle fala: Para as ruas? Ocupações? Assinaturas? Em benefício da classe? Será mesmo? Faz tempo que deixei de participar de movimento, abaixo-assinado ou qualquer coisa que traga bandeira partidária. Se é pela classe, não atrele a partidos, e, até o momento, todos estão atrelados.

Texto expositivo: Claro como ar que eu respiro e a manhã que se levanta está que, a arte é a religião de Renato Valle, enquanto suas políticas estão no que o cotidiano lhe traz, as pautas de sua verve. “A minha religiosidade é que me leva a agir politicamente e apartidariamente de forma aristotélica”. Rejeita a política formal dos conchavos e disputas eleitorais, essa ele acompanha e passa mal.
Cotidianamente. Sem jamais fazer um cílio se mover no sentido de sua inserção ou articulação – ele se abstém, mantendo-se à margem dela. Ao contrário, na arte mergulha de modo profundo. Perene. Dedicado. Devoto. Uma doutrina cultivada ao longo de cinquenta anos. Profissão de fé, monástico, de retiro em algum trabalho que esteja envolvido. Todo santo dia é “dia útil”. Fazer obras de arte é dar-se o respirar ao espírito.
Na virada de décadas, em levantamento para o site do artista, elaborou-se um raisonnéde Valle. Uma das obras mais antigas registradas é Comemoração da paz (1979), bico de pena apresentado em Salão oficial, já tratando do anseio coletivo em tempos de disputas políticas e religiosas. No ano seguinte, Valle foi premiado com Decadência (1980), desenho em que se vê, ao centro da imagem, uma arma diante de uma igreja católica. Em 1983, participou do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco com O presidenciável, óleo de 1983. Na primeira individual, Renato Valle – Pinturas 86, expôs, entre outras, ex-votos, oratórios e O fazedor de intrigas I e II (ambas de 1986), referência à Operação El Dorado Canyon, ataque dos EUA à Líbia em 1986. Cedo já se definiriam estes dois dos seus pontos de interesse.
A junção dos vocábulos gregos "laos" (povo) e "ergon" (trabalho, serviço, ação) forma "leitourgia", que nos chega, em sua versão latina: “liturgia”. Diz da união do gesto político ao religioso como serviço público em favor da comunidade. Hoje abrange a plêiade de ritos e cerimônias, não exclusivamente religiosas.
Nesse sentido, Valle exerce sua liturgia artística: repete orações, toques, manifestações, incorporações – na sua construção peculiar de símbolos e sinais, ele faz, refaz, atualiza, repinta, revisita e repete... Sempre de forma renovada, nunca redundante.

Renato Valle fala: “Creio que a necessidade de expressar aquilo que se sente e se pensa é suficiente para conduzir o artista a algum lugar. Dessa forma, toda experiência emocional e intelectual se reflete naquilo que se faz, e os temas vêm, vão, e quase sempre voltam, sem que seja necessário buscá-los”.

Texto expositivo: Sua produção revisita e reinventa temas. Em Escritos sobre pinturas ruins, série de 2012, interferiu com texto sobre obras pretéritas. Nas residências de Diálogos, entre 2005 e 2009, deu novos traços a produções alheias. Em A revisão da pintura (2018–2019), reelaborou telas próprias. Mais recentemente, homenageou artistas como Gil Vicente, João Câmara, Cildo Meireles e Debret, em obras que tecem homenagens-reverências a trabalhos destes, na mostra brail (2025). Seus ex-votos, recorrência central, traduzem seu hábito devocional e afirmam sua prática como arte-liturgia.

Imagem de obra: O bicho, 2012. Óleo e acrílica sobre tela. 96 por 81 centímetros. Audiodescrição: Pintura retangular, na vertical, faz alusão à bandeira dos Estados Unidos da América. Possui treze listras horizontais, de mesmo tamanho, alternadas em vermelhas e brancas, e, no canto superior esquerdo, um retângulo azul, em nove linhas horizontais e catorze estrelas brancas. A pintura é composta por dois planos; no primeiro, está a bandeira norte americana e, no segundo, a ilustração de um ser monstruoso. As estrelas estão na cabeça e no pescoço desta figura humana, um homem branco, de meia idade, careca, com nariz grande, de perfil para a esquerda, dorso curvado para baixo e boca pequena. O corpo é grande, arredondado, corcunda, está nu e tem braço fino, curto e pé pequeno. Com letras arredondadas sobre o homem, a bandeira é composta por expressões da cultura estadunidense – o retângulo azul e as listras vermelhas e brancas são escrituras como: “God bless america”, “star-spangled banner”, “In God we trust”, “X-men”, “Superman”, “Blade”, “Robin”, “The Flash”, “Rambo”, “Supergirl”, “The Bionic Woman”, “Batman”, “Wachtman”, “The incredible Hulk”, “Captain America”, “The Terminator”, “The six million dollar man”, “Green lantern" e “Invisible man”.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, primeira edição, 2005 – 2006. IAC/UFPE, Recife-PE. Audiodescrição: Foto de um homem deitado de lado, que desenha uma figura feminina com traços exagerados e geometrizados, em uma grande lona bege na parede branca. A mulher é vista da altura do peito e está perfilada para a direita. Tem cabelos pretos, volumosos e abaulados na ponta, acima dos ombros. Tem sobrancelha preta, delineada e arqueada, olho grande, olheira inchada, nariz retangular, reto, comprido e pontudo, boca fina e escura e queixo curvado, mais retraído que o restante do rosto. Na região dos olhos, da bochecha e da boca, há rugas e linhas de expressão. Ele desenha a blusa, ainda transparente, com estampa de traços curvos, semelhantes a arabescos. O desenhista tem pele clara, cabelos curtos e castanhos, veste camisa verde, calça jeans e tênis branco. Ele está com a cabeça à esquerda, sustenta o peso do corpo no braço esquerdo apoiado no chão e desenha com a mão direita. Ao lado dele, à esquerda, há um pincel e uma pequena caixa azul sobre um piso de mármore.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, terceira edição, 2006. Museu Murillo La Greca, Recife-PE. Audiodescrição: Fotografia na vertical, colorida, do artista Renato Valle em uma escada de ferro desenhando a obra “Livro-de-memórias-regressivas” em lápis grafite sobre lona de algodão cru. O artista está na escada, de costas para nós. Ele se segura com a mão esquerda e, com a outra mão, desenha na lona do lado direito. A lona está completamente rabiscada com textos de cartas manuscritas. Renato tem cabelos curtos, escuros, usa camisa branca, calça clara e tênis. Há uma projeção de palavras manuscritas na parte de trás de Renato e sombra na parede em que ele desenha. O teto é branco.

Imagem de Obra: Bebê ex-voto, 2018 - 2019. Óleo sobre tela. 65 por 110 centímetros. Audiodescrição: Pintura com fundo amarelo e um bebê que engatinha para a esquerda com uma pequena mamadeira laranja, de bico pequeno, na mão direita. Ele tem formas arredondadas, pele alaranjada, cabeça grande e achatada no topo, olhos, nariz, orelha e boca pequenos. Os braços, mãos, pernas e pés são grandes e inchados. Usa camiseta vermelha e fralda marrom.

Imagem de obra: Inimigos - homenagem ao amigo Gil Vicente, 2023 a 2025. Grafite sobre lona crua. 265 por 212 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite sobre uma grande lona clara. Deodoro da Fonseca, montado em um cavalo branco e forte, segurando uma corda que enforca o pescoço do Imperador Pedro II. Os homens são brancos, têm cabelos curtos e bigodes e barbas volumosos. Deodoro tem cerca de 60 anos, usa uniforme militar da cavalaria, casaco escuro com oito botões grandes e claros, sendo quatro de cada lado, calça escura e bota. Ele olha para sua direita, sério – com a mão direita segura a corda no alto e com a esquerda as rédeas do cavalo. O Imperador Pedro II aparenta ter cerca de 70 anos, tem cabelos e barbas brancos e está sentado em uma cadeira de madeira. Ele olha para frente, sério, com a corda em volta do pescoço e as mãos semifechadas sobre as coxas. Ele usa camisa branca, colete e casaco, calça e sapatos pretos.

Imagem de obra: Uma cena da vida brasileira depois de Câmara, 2023 a 2024. Grafite sobre lona crua. Políptico: 242 por 650 centímetros (conjunto). Audiodescrição: Quatro desenhos em grafite sobre lona, separados entre si. O primeiro, da esquerda para a direita, é Getúlio Vargas visto dos ombros para cima. Ele é um homem branco com cerca de cinquenta anos, cabelos curtos e escuros, com entradas, sobrancelhas delineadas, nariz afilado e boca pequena e fina. Ele está sério e levemente perfilado para a esquerda. Usa camisa e gravata borboleta branca e smoking preto. Ao lado, Olga Benário, uma mulher branca, com cerca de quarenta anos, de cabelos curtos, pretos e ondulados com uma pequena presilha, sobrancelhas finas, nariz achatado e boca pequena. Ela está séria, levemente perfilada para a direita. Usa um casaco escuro com gola. Ao lado, duas imagens menores, uma acima da outra. Na de cima, atrás de duas linhas de arame farpado na horizontal e uma na vertical, Olga está à esquerda, careca e de boca aberta, de perfil, olha para a direita, onde duas mãos com luvas escuras seguram Anitta, sua filha, um bebê branco, recém-nascido, com o cordão umbilical pendurado. Na imagem abaixo, uma câmara de gás, um ambiente escuro, com paredes compridas e sujas, à esquerda e ao fundo, uma porta.

Imagem de obra: Homenagem a Cildo Meireles e Vladimir Herzog, 2023. Impressão em canvas (lona). 100 por 225 centímetros. Audiodescrição: “Quem matou Herzog?” está carimbado sobre uma nota de um cruzeiro ampliada. A nota tem tons de verde e branco e o carimbo é preto e está na diagonal, em destaque. À esquerda, sobre um ornamento verde escuro com quatro pontas em formato de pétalas, tem o número “1” em branco. Ao lado, uma faixa vertical larga e esbranquiçada escrito “um” na parte inferior. O carimbo pega parte da faixa e mais à direita dela. Na parte superior, em letras grandes, “Banco Central do Brasil” e depois, o número “um” em branco sobre um retângulo irregular verde escuro. Abaixo, uma faixa horizontal verde escura escrito “Um cruzeiro” à esquerda dela e à direita, sobre a faixa, há um círculo com uma efígie da República de perfil para a esquerda, um rosto com traços finos, cabelos curtos esvoaçantes e um chapéu com uma estrela no topo. Abaixo da faixa, no centro da nota, há duas assinaturas. E, nos cantos superior esquerdo e inferior direito, as inscrições: “B13544” e “080211”.

Imagem de obra: Persistência doentia, 2024. Óleo sobre tela. 180 por 250 centímetros. Audiodescrição: Uma atualização da obra “Um jantar brasileiro”, de Debret, de 1827. Na imagem, uma mulher e um homem brancos estão sentados à mesa, e três adultos e duas crianças negras ao redor. A mulher está na cabeceira da mesa, à esquerda, ela tem os cabelos presos com uma tiara dourada, usa um vestido amarelo com decote, tem seios fartos, usa um colar dourado e sapatos azuis. Sobre o ombro direito, há uma bandeira do Brasil.
Com a mão direita, estende um garfo com um pedaço de comida para um menino negro, que está em pé, de perfil para a esquerda. Ele está nu, tem cabelo curto, barriga e bunda protuberantes, usa gargantilha e pulseiras cor de cobre e segura o alimento com as duas mãos. Ao lado direito, há outra criança nua, de cabelos curtos, sentada, com uma comida na boca. Atrás da mulher à mesa, à esquerda, está uma mulher negra, em pé, de perfil para a direita. Ela tem cabelos curtos, usa tiara, brinco, colares e vestido brancos e está descalça. Segura um afastador de moscas com cabo de madeira e fitas de panos claros na ponta. Na outra cabeceira, está o homem, ele tem cabelos escuros e costeleta, usa uma camisa da seleção brasileira: manga comprida amarela, com a gola e punhos das mangas verdes, calça azul e sapatos amarelos. Ele está com uma colher cheia, próxima à boca. Atrás dele, um homem negro, sério, de braços cruzados, olha para a mesa. Usa blusa vermelha com golas brancas e está descalço. Ao lado direito, na porta, há uma mulher negra, com o braço direito dobrado sobre o corpo, usa camisa bege e calça branca. A mesa está forrada com uma toalha branca. Sobre ela, além dos pratos do casal, há taças, uma travessa com um galeto, outra com três frutas amarelas, uma jarra e uma garrafa. As paredes são cinza-claro e o piso de madeira.

Texto expositivo: O primeiro capítulo aborda a repetição como milagre das multiplicações, tendo como referência Diário de votos e ex-votos (sua pesquisa realizada entre 2003 e 2005), cinco mil desenhos que, nas palavras de Valle, representam “duas experiências humanas: drama e esperança”. E um paralelo com os incontáveis ex-votos elaborados em técnicas, dimensões, suportes e épocas distintas, ao longo de sua vasta obra

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de desenhos 4001 a 5000), 2003 – 2005. Grafite sobre papel. 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: A obra é um políptico com 5 mil desenhos diferentes em diversos tipos de traços e técnicas e com vários grupos temáticos ilustrados em temas variados. Ela pode ser exposta de maneiras diferentes, a depender do espaço, e vista de formas diversas a depender do posicionamento da obra e da pessoa que a observa. Esta é a parte final do políptico, os desenhos 4001 a 5000, em um conjunto de vinte desenhos na vertical e cinquenta na horizontal. Há três subgrupos de desenhos: o primeiro, começa no canto superior e inferior esquerdo e são rostos disformes, monstruosos; o segundo começa na parte central superior, desce até o meio e segue para o lado esquerdo, entre os rostos disformes, são desenhos de rostos de crianças; à direita, da parte superior ao centro, mais figuras amorfas. O terceiro grupo começa do 10 desenho vertical com o 25 da horizontal e se expande para o lado direito e para baixo, a partir da 15 coluna, se estende para o lado esquerdo até a 11 linha. São desenhos de figuras e pessoas com braços abertos e cruzes.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de temas e técnicas variados), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Trinta e dois desenhos em grafite, Rostos, pessoas de braços abertos e partes do corpo, dispostos em quatro linhas e oito colunas. Na primeira linha, da esquerda para a direita, há um rosto arredondado de um homem triste com as bochechas caídas; uma mulher nua, pequena e rechonchuda, de braços abertos; um pé inchado com quatro dedos gordos e deformados; um dente com parte da coroa carcomida; um homem nu, com braços curtos e assimétricos abertos; vários ossos na horizontal ligados por um maior na vertical, que lembram o esqueleto de um peixe; um jovem negro e magro, com casaco escuro e calça clara; e um homem careca, com o topo da cabeça achatado e pescoço grosso, com um coração protuberante sobre o peito. Na segunda linha há uma vulva com poucos pelos entre duas coxas; uma mão escura com dedos grossos virados para cima; uma pessoa escura e gorda com os braços cruzados; o rosto de uma bebê com um laço no cabelo e boca aberta; um rosto escuro e disforme; um rosto de uma mulher de cabelo Chanel de perfil para a direita; uma boca aberta com dentes quebrados; e um pênis com um saco escrotal grande, de perfil para a esquerda. Na terceira linha há um bebê em posição fetal virado para baixo; o rosto de uma criança com uma touca; um cérebro; uma mulher nua e corpulenta com os braços abertos; uma mulher gorda de costas com os braços abertos; um coração com quatro artérias acima e um buraco à esquerda; o rosto de um homem levemente virado para cima com uma boca grande aberta e com dentes quebrados; e uma mão com o punho fechado. Na última linha há um rosto de um homem narigudo de perfil para a esquerda com um curativo na orelha; duas canelas grossas e pés descalços; o rosto de um homem careca com sobrancelhas e olhos pequenos levemente virado para cima; um olho caído com olheira e um nariz grande; dois peitos grandes, assimétricos e pontudos e uma barriga protuberante; um rosto todo pintado de preto; uma perna enfaixada de perfil para a direita; e por fim, uma pessoa com um chapéu escuro, uma mancha preta no olho direito, nariz largo e boca carnuda.

Texto expositivo: Os trabalhos de Diálogose da série Cristos e Anticristos, esta, fruto de uma pesquisa por dois anos, a partir de 2010, revelam como Valle, a partir de seu repertório técnico, dialoga com práticas consagradas da historiografia artística, posicionando-se como autor contemporâneo. No segundo capítulo, evidencia-se que sua inovação não é uma inflexão na técnica em si, mas, a partir do uso canônico da linguagem, o artista atualiza o repertório humano, entre fazer, desde sempre, e o dizer, daqui, situando sua obra no tempo presente.

Imagem de obra: Criança sentada, sob o impacto de uma determinada programação televisiva infantil, 2006. Grafite sobre lona crua. 365 por 424 centímetros. Audiodescrição: Foto de um menino de costas, diante do desenho de um bebê gigante, em grafite sobre lona, preso no alto de uma parede branca. O bebê está despido, sentado de pernas abertas e tem muitas dobrinhas nos braços, pernas e pés. Está com a cabeça, careca, levemente inclinada para baixo, e de olhos fechados. Encosta a mão direita no pênis e a outra no rosto. O menino que observa tem cerca de 3 anos, cabelos pretos, usa moletom cinza, bermuda preta e branca listrada e sandálias pretas. O piso é branco.

Imagem de obra: Cristo e Anticristo Coca-Cola I, 2010 – 2011. Escultura, resina de poliéster e Coca-Cola. 56 por 83 por 12 centímetros. Audiodescrição: Escultura com duas cruzes semelhantes, feitas com latas de Coca-Cola cobertas por resina transparente com acabamento reto nas pontas. A cruz da esquerda está de pé, na posição tradicional, e a da direita invertida, com os braços na parte inferior da cruz. As latas de Coca-Cola são vermelhas com as letras brancas. Há cinco latas empilhadas na vertical e cinco ladeadas na horizontal. Há rachaduras e imperfeições nas superfícies.

Texto expositivo: O terceiro capítulo aborda a relação entre fé e política, destacando como ambas justificaram execuções com a anuência do Estado. Esse tema aparece em Bandido bom é bandido morto, revista ilustrada, publicada em 2022, que analisa penas capitais históricas e a produção sistemática de vítimas.

Imagem de obra: Os três condenados, 2021. Tinta PVA, nanquim e bico de pena sobre papel, 18,5 por 23 centímetros. Audiodescrição: Imagem da crucificação de Jesus e outros dois homens. À esquerda, há um homem de pele clara, cabelos e barba pretos, com o rosto levemente virado para baixo. Ele usa um pedaço de tecido de tom rosa na cintura. No centro, mais atrás, Jesus está despido, tem pele clara e barba e usa uma coroa avermelhada sobre a cabeça. Ele está com o rosto inclinado para baixo e as pernas dobradas para a direita.
Há sangue escorrido abaixo do peito direito. Na parte superior da cruz, há uma placa escrito “INRI”. À direita, o terceiro homem tem pele clara, cabelos e barba pretos, e está com a cabeça levemente virada para a esquerda e usa um tecido de tom rosa na cintura. Os homens estão com os braços abertos, amarrados por cordas na madeira horizontal da cruz, e os pés unidos e amarrados na parte inferior. As mãos e pés estão pregados e sangrando. Ao fundo, o céu é escuro e o chão é marrom e rachado.

Texto expositivo: Na quarta seção, temos brail – conjunto de 12 trabalhos (11 produzidos entre 2020 e 2025 e um de 2006) que expõem autoritarismo e desvios da República brasileira. As obras transitam do retrato realista ao objeto ready made, mostrando como a fé que temos em nós mesmos desafia a filosofia política que sustentam o Estado e a sociedade.

Imagem de obra: A República, 2020 a 2025. Objeto - bananas mumificadas e artificiais sobre MDF. 200 por 200 centímetros. Audiodescrição: Sobre fundo preto, há um grande mapa do Brasil, feito de bananas amarelas e verdes realistas.

Imagem de obra: Tecido social, 2025. Objeto - retalhos de tecidos e folhas de ouro sobre MDF. 200 por 200cm. Audiodescrição: Sobre fundo preto, há um grande mapa do Brasil, feito de retalhos de tecidos coloridos, costurados grosseiramente um nos outros. Há tecidos nas cores amarela, azul, cinza, laranja, verde e estampados. Espalhados pelo mapa, há pequenos pontos dourados de folhas de ouro.

Imagem de obra: Espelho, espelho meu, 2025. Objeto - película, espelhos e molduras de plástico sobre MDF. 200 por 200cm. Audiodescrição: Sobre um fundo preto, há um grande mapa do Brasil feito de diversos espelhos. Há espelhos maiores e pequenos, nos formatos retangulares, redondos e ovais, com molduras laranjas, brancas, douradas, amarelas, vermelhas, azuis, verde, rosa e roxa.

Texto expositivo: O quinto capítulo encerra com uma biografia singular do personagem deste livro: não lista conquistas, glórias, feitos curriculares ou premiações e condecorações, mas narra o devir espiritual deste ser humano, desde a infância até sua atual compreensão e prática no campo espiritual da vida.
Apenas uma pequena parte da produção não foi incluída, por limitação de páginas. É o caso das fotografias – linguagem menos notada da produção de Valle, se comparada ao desenho, pintura e gravura – embora as séries com o foco no cotidiano popular em Pernambuco, como as Grades de caminhões (2002 – 2004) e outras, feitas em 2011 e exibidas no Recife, naquele ano, e em Petrolina, no ano seguinte, na mostra Figura, Paisagem e Natureza Morta, revelem sua relevância.

Imagem de obra: Bucho e vassoura, 2012. Fotografia. Audiodescrição: Fotografia vertical, colorida, de um matadouro. Há um balcão de pedra e, sobre ele, à direita, um bucho de boi ovalado na horizontal, acinzentado com partes em bege e rosa claro. O balcão é sujo, com manchas escuras de lodo esverdeado na parte da frente, de cima abaixo, mais claro na parte superior do que em baixo. À frente, encostada no balcão, há uma vassoura de madeira com as cerdas cinzas e verdes. O chão é marrom escuro e tem poças. Ao fundo, uma parede azul com várias manchas menores escorridas e uma grande mancha preta.

Texto expositivo: Bruno Albertim, ao mapear religiosidade e política na obra de Renato Valle, traz os marcos mais significativos da trajetória do artista. Obras centrais são contextualizadas por outras de menor vulto, mas igualmente fundamentais, referendando o recorte escolhido para esta publicação. Albertim, crítico, curador, pesquisador e jornalista tem na produção de bons textos o seu pão de cada dia. Já havia escrito em 2017 sobre a exposição Religiosidade e Política na Obra de Renato Valle. A clareza de sua análise consolidou-o, enquanto desejo nosso de termos o texto para este livro de agora, à época ainda um projeto embrionário.
Já o autor da apresentação deste livro, desde 2009 colabora com Renato Valle em diferentes projetos ligados a religião, política, ambos e outros temas.

Renato Valle fala: “Conheci Diogo Dobbin - Todé no início dos anos 2000. Lembro que participou de uma obra coletiva durante o Projeto DIÁLOGOS no IAC. Com o tempo nos tornamos amigos e parceiros em alguns projetos. Todé fez as expografias e coordenou as montagens de DIÁLOGOS no MEPE e de RELIGIOSIDADE E POLÍTICA na Galeria Janete Costa. Fez o projeto do meu site, mapeou a minha obra e escreveu o livro VALLE-EDUCA”.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, primeira edição, 2005 – 2006. IAC/UFPE, Recife-PE. Audiodescrição: Foto vertical, colorida, de um homem sentado a uma mesa desenhando uma cruz em um papel pequeno, da obra O Jogo Malevichco dos Quatrocentos Acertos. O homem tem cerca de 40 anos, pele parda, é magro, tem cabelos curtos e escuros, com entradas salientes na lateral da testa, usa óculos de grau e olha para baixo, em direção ao desenho. Usa camisa quadriculada, de mangas, dobradas no cotovelo, de cor cinza azulada com branca. Ele tem braços peludos, usa uma fita laranja no punho direito e, na mão esquerda, um anel no dedo anelar e outra pulseira no punho. Ele desenha com um lápis verde, com uma faixa branca na ponta. A mesa é de madeira e possui algumas manchas claras sobre ela. Atrás do homem, uma parede de cor salmão e, do lado direito, uma porta de madeira aberta, com um papel colado.

Imagem de ação: Montagem mediada da exposição “Religiosidade e Política na Obra de Renato Valle”, 2017. Galeria Janete Costa, Recife-PE. Audiodescrição: Fotografia na horizontal, colorida, dentro da galeria Janete Costa, um salão espaçoso com paredes e iluminação brancas. Ao centro da imagem, sentado mais alto, Diogo Todé fala para adolescentes sentados ao chão. Ele tem por volta de quarenta anos, pele clara, barba cheia, usa uma boina preta e camisa de botão com mangas compridas, azul. O grupo que o arrodeia são cerca de sessenta adolescentes, entre treze e quinze anos, vestidos de uniforme escolar, camisa branca com listra grossa azul-marinho na manga, calça jeans e tênis.
Atrás dos estudantes, um pouco à direita da imagem, há a obra “A filha da Monga” que ocupa quase toda uma parede do meio do salão. À frente da parede, uma mulher de vestido longo e estampado observa a turma com três adolescentes, em pé, próximas a ela. Na parede de fundo do salão dá para ver quase toda a obra “Diário de votos e ex-votos”. No teto, acima desta obra, há dez lâmpadas pequenas acesas. Ao longe, dois homens se entreolham.

Texto expositivo: Esta é a sétima publicação em que participa sobre a obra do artista. A primeira ocorreu, no catálogo de Diálogos (2009), enquanto fez parte da equipe do projeto, sendo responsável pela concepção da expografia.
Naquele mesmo ano, editou História de sono, de sonho e de morte pela Livrinho de Papel Finíssimo. Em 2021, publicou a pesquisa e edição de conteúdo multimídia no site www.renatovalle.art e escreveu e editou Valle-Educa, sobre a relação do artista com a UFPE. Colaborou com o livro Renato Valle, da CEPE, Companhia Editorial de Pernambuco, publicado em 2024, onde escreveu o capítulo da prática educativa deste artista. Mais recentemente, dividiu com Valle e Robson Lemos as edições de Bandido bom é bandido morto (2022) e do catálogo da exposição brail (no prelo).

Imagem de capa: Valle-EDUCA – a ensinagem de Renato Valle, artista-pesquisador-educador, 2021. Livro de Diogo Dobbin – Todé. 153 páginas, 20 por 17 centímetros. Audiodescrição: Fotografia colorida, na vertical, com uma moldura quadrada em branco translúcido. Um menino correndo sobre um desenho no chão. É dia, em uma rua de terra batida, ladeada por mato, o menino está de costas, com o corpo levemente virado para a esquerda. Ele tem cerca de 10 anos, é magro, pardo, tem cabelos curtos e segura uma camisa quadriculada na mão direita. Veste uma cueca laranja, uma bermuda folgada preta e está descalço. No chão, um desenho de dois olhos e uma boca estilizados, em contorno preto. O menino está entre os olhos, que tem a íris esquerda azul e a outra amarela. Na ponta direita de cada olho, uma linha que vai para a esquerda e forma um pequeno caracol no fim. Os cílios inferiores são grandes. A boca é vermelha e tem a parte superior arredondada e a de baixo como se fossem dois triângulos lado a lado. Na parte inferior, à direita, em letras brancas: "Valle-Educa – a ensinagem de Renato Valle artista-pesquisador-educador". Abaixo da moldura, uma barra de mesma cor, nela à direita, em letras brancas: Diogo Dobbin - Todé.

Imagem de capa: Bandido bom é bandido morto, 2021 – 2022. Revista ilustrada. 58 páginas: 28 por 21 centímetros. Audiodescrição: Mosaico irregular, composto por colagens de recortes das obras de Renato Valle. Os recortes verticais e horizontais estão sobrepostos; a maioria é colorida e alguns preto e branco. Centralizado no topo, em letras brancas e maiúsculas: “BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO”, em duas linhas. Da esquerda para a direita, os recortes do rosto de um homem negro de olhos fechados, dois pés algemados, um olho, um fuzil virado para a esquerda e pés amarrados sangrando. Abaixo, um braço amarrado por cordas em um pedaço de madeira, um homem de olhos vendados preso pelo pescoço e uma mão próxima a um cadeado. Mais abaixo, o olho de um homem negro, um homem negro enforcado e outro crucificado. Depois, uma mão escreve à pena, outra mão sangrando, uma algemada, mãos amarradas por corda, e por fim, um homem com uma espingarda em punho, uma mão com prego na palma, com sangue escorrendo, e o texto branco “CTS”.

Texto expositivo: A fé de Renato Valle na arte é pública e notória, assim como é sabido por todos da sua militância pulverizada, sem vínculos partidários ou causas específicas. Há uns tempos, amplia essa dimensão em vídeos nas redes sociais, onde compartilha opiniões sobre diferentes temas. Não se trata de uma vida em lutas e ativismos, mas há de se fazer justiça e façamos os devidos registros.
Em 1978, enquanto fazia sua estreia profissional, Renato Valle doou um bico de pena ao Fundo de Greve dos Professores da UFPE, ele se orgulha. Renato Valle fala: “Essa foi a minha primeira participação em um movimento que se opunha à ditadura!”. Desde então “Participei de algumas campanhas, doei obras, como artista e cidadão, sem me filiar a partidos”. Texto expositivo: Também contribuiu financeiramente, como no financiamento coletivo que viabilizou a exposição Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira.
Valle engajou-se em coletivos culturais, como o periódico Edição de Arte, no final dos anos 1980, e, de 2009 a 2013, a Sala Recife, uma galeria sem fins lucrativos dedicada ao desenho e à pintura. Ali se estabeleceu uma ação de extensão acadêmica com a Universidade Federal de Pernambuco por dois anos, até o encerramento das atividades. Na Oficina Guaianases de Gravura foi eleito diretor técnico, em meados dos anos 1990, foi nesta gestão que se articulou a doação do acervo e maquinaria à UFPE – a partir daí, do apagar do século XX, na Universidade, promoveu diversas ações, envolvendo a comunidade acadêmica, a partir desses espólios.

Imagem de obra: Lamparina II, 1997. Litografia. 56 por 39,5 centímetros. Audiodescrição: Gravura vertical em preto e branco. Sobre uma base, há uma lamparina composta por duas partes ovaladas e escuras, levemente inclinadas, uma maior à esquerda, conectada a outra à direita. Da menor, sai um fio preto que sobe pela lateral direita da gravura e desce próximo ao canto superior esquerdo. Na ponta do fio há um clarão esbranquiçado, que ilumina a parte superior esquerda da imagem. Na margem inferior, escrito a lápis, "Lamparina II" e, à direita, a assinatura do artista Renato Valle.

Texto expositivo: Mesmo sem fundamentação pedagógica formal, sua atuação consolida uma prática educadora emancipadora e reflete um “educar político”, próximo às ideias de Paulo Freire.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, sexta edição, 2009. Movimento Pró-criança, Jaboatão dos Guararapes-PE. Audiodescrição: Fotografia colorida, horizontal, de crianças desenhando em rua de terra batida em frente à Ong Movimento Pró-Criança no bairro de Piedade. Cerca de vinte crianças, algumas com aventais, desenham o chão com líquidos coloridos – preto, amarelo, azul e vermelho – em garrafas plásticas de refrigerante. Há desenhos de formas geométricas, delineadas de preto: losangos, círculos, triângulos e quadrados, algumas sobre as outras. Ao fundo, uma grade e à direita, um muro branco.
Atrás da grade há um prédio vermelho com duas pilastras amarelas na entrada e uma placa branca e azul com a marca do Movimento Pró-Criança. Há várias crianças na frente do prédio. Ladeando o caminho, há áreas com mato.

Imagem de ação: Capacitação de jovens para polo de ceramistas, 2010. Cortês-PE. Audiodescrição: Fotografia horizontal, colorida, de crianças desenhando outras crianças em uma grande folha de papel, sobre o chão de uma sala de aula. Em primeiro plano, há uma menina e um menino deitados no chão, de barriga para cima, lado a lado, enquanto outras quatro crianças traçam seus contornos. Elas têm entre dez e doze anos. À esquerda, a menina deitada tem cabelos compridos, usa blusa verde, bermuda jeans e está descalça. Ao lado dela, o menino usa boné verde e amarelo e camisa branca. À direita, uma segunda menina, de cabelos compridos, amarrados, risca no papel a mão direita da modelo. Uma terceira, à esquerda, de joelhos, segura as pernas da menina deitada, olha em direção a ela e sorri. Ela está com os cabelos amarrados.
Também do lado esquerdo, próxima ao ombro da modelo, uma quarta está de joelhos no chão, apoiada nos calcanhares, com as mãos nas pernas e olha para nós. As três usam blusas brancas e jeans. À direita, na frente do menino deitado, um segundo menino usa boné listrado, camisa branca, calça jeans e chinelo. Está com a mão esquerda e os joelhos apoiados no chão e o corpo curvado para o modelo. Mais à direita deles, há um menino de perfil para a esquerda, como se estivesse levantando do chão, que usa boné, camisa bege, bermuda verde e chinelos; E uma menina, com cerca de oito anos, de perfil para a esquerda, em pé, com os cabelos amarrados, blusa amarela, saia rosa, descalça, está de braços cruzados e olha em direção às crianças deitadas. Atrás das meninas que desenham, há mais duas meninas, uma aparenta seis e a outra dez. A mais nova olha em direção às crianças no chão e a outra para a esquerda. Em segundo plano, um espelho que ocupa toda a parede da sala dá a ilusão de um espaço ampliado e reflete as crianças e Renato Valle, ao centro, registrando a fotografia. O artista usa camisa vermelha e calça jeans. À esquerda, há três adultos sentados à mesa, uma mulher em uma cadeira encostada na parede e uma menina, de perfil para a esquerda, com o braço e a perna direita erguidas e, à direita, está um painel branco com cartolinas coladas na frente de carteiras escolares. A sala tem algumas lâmpadas acesas, paredes com a parte superior branca, uma faixa vermelha ao centro e a parte de baixo azul, dois ar-condicionados e o chão de azulejos quadriculados claros.

Imagem de ação: Montagem mediada da exposição Desenhos - Renato Valle, 2014. Galeria Newton Navarro, Natal-RN. Audiodescrição: Foto colorida, horizontal, de desenhos em telas de Renato Valle, no chão, lado a lado em fileiras, sobre um pano branco. Há quinze maiores, quadrados, arrumados em três fileiras. Eles têm fundo branco e o desenho em preto e cinza, de homens crucificados – um deles é gordo, outros magros com a cruz fina, alguns são apenas as silhuetas, outros os homens estão de braços abertos sem a cruz. Na parte superior, à esquerda da imagem, há doze quadros menores, retangulares, também com o fundo branco, com desenhos de cabeças, mão, um corpo gordo e figuras abstratas. Em volta do pano se vê pernas e pés de sete pessoas.

Texto expositivo: Pode-se afirmar que, sobre a fé e a busca do bem comum, este livro dá conta do caminho traçado por Renato Valle. Creio ser fundamentalmente mais importante que historiar sua obra pretérita, é celebrar que sua produção segue crente, contundente e ativa. Ele continua e esteve, há pouco, criando uma série de novos ex-votos, acabou de cerrar as portas da exposição braꙄil e já prepara uma mostra para breve – trabalhos políticos (atos), ainda inéditos. Tem mais por vir!
A benção, Renato Valle. Faço votos por ti. Saravá!!!

Diogo Dobbin Todé: Produtor cultural e Editor de VOTOS









A seguir, textos principais, de Bruno Albertim Expurgos – Capítulo 1


Texto expositivo: O filho de Apolo passou de maneira injustamente discreta para a história. Quase um anônimo. Um personagem menor, a despeito de seu poder nada ordinário: Asclépio tinha a capacidade de trazer os mortos à vida. Nascido do romance do voluntarioso e belo deus das artes e do Sol com a Virgem Corônis, veio ao mundo às pressas, numa cesariana operada na barriga ainda quente da mãe já morta. Criado por um centauro que o educara no entendimento das ervas, o órfão especializou-se na cura das enfermidades e desgraças dos corpos. Morto por Zeus com um raio para evitar que o filho alterasse a ordem do mundo, tornando os humanos imortais, seu santuário seguiria recebendo levas de peregrinos. Como prova material da gratidão, os fiéis passariam a depositar, pelo chão e paredes do templo, réplicas esquemáticas de membros significativos do corpo humano. Cabeças, pés, pernas, genitálias.

Imagem de obra: Oratório I, 1986. Óleo sobre tela. 70 por 55 centímetros. Audiodescrição: Pintura de um oratório, com portas abertas e uma banana dentro, sobre uma mesa retangular forrada com uma toalha branca. O oratório é de madeira marrom escuro, tem duas portas que se abrem para as laterais, são fixadas por dobradiças de mesmo tom que a madeira. A base interna do oratório é mais clara, como se fosse mais iluminado. A parte superior é formada por quatro arcos com adornos entalhados na madeira. A banana está ao centro, com a ponta para cima e a base do pedúnculo para baixo. Ela é grossa, madura, e tem algumas manchas disformes pretas. No fundo do oratório, a sombra da fruta. A parte inferior é retangular, com vazamento que vai dos pés até o centro, em formato com base arredondada e ponta triangular, acompanhado de um entalhamento na madeira de mesmo formato. A toalha tem marcas de dobras salientes, na quina e no meio da mesa, formando uma cruz ao centro, e outras marcas que sugerem amassado na toalha. A claridade vinda do lado direito, forma a sombra do oratório abaixo se estendendo ao lado esquerdo da mesa. No canto inferior direito, a assinatura do artista: Renato Valle, 86.

Imagem de obra: Bebê ex-voto, 2018 - 2019. Óleo sobre tela. 65 por 110 centímetros. Audiodescrição: Pintura com fundo amarelo e um bebê que engatinha para a esquerda com uma pequena mamadeira laranja, de bico pequeno, na mão direita. Ele tem formas arredondadas, pele alaranjada, cabeça grande e achatada no topo, olhos, nariz, orelha e boca pequenos. Os braços, mãos, pernas e pés são grandes e inchados. Usa camiseta vermelha e fralda marrom.

Texto expositivo: Simulações em madeira, pedra e resina de partes do corpo seriam também depositados em honra de Apolo e Ártemis, duas das mais prestigiadas divindades da chamada Grécia Antiga, nos templos dedicados às divindades responsáveis, respectivamente, à gestão da beleza e da castidade entre os humanos. Mais de dois mil anos antes de Cristo, portanto, os ex-votos eram já meios populares de materialização de agradecimentos a curas, restaurações e reavivamentos por intercorrência divina. Eram comuns, antes, também na Antiga Mesopotâmia e outras civilizações remotas. Com as romarias popularizadas por Portugal a partir do século 17, igrejas, capelas e templos, públicos ou particulares, passaram a se transformar, Brasil adentro, em memoriais vívidos da fé. Grandes salas de milagres onde a crença católica e morena brasileira se objetiva, desde então, por meio de pedaços toscos de madeira como súmulas de corpos regenerados. Ou, em menor quantidade, de obras refinadas encomendadas por famílias abastadas até a criadores de renome. Na Itália do Renascimento, artistas como Ticiano também executavam pinturas com o propósito do reconhecimento da graça encerrado nos limites dos ex-votos. O quadro Jacopo Pesaro sendo apresentado pelo Papa Alexandre VI a São Pedro lhe foi encomendado pelo próprio nobre italiano como forma de agradecer à igreja sua vitória numa grande batalha de 1502. Sinteticamente narrativas, pinturas votivas são também populares no Brasil desde os primeiros tempos de colonização.
No começo dos anos 1980, Renato Valle descobre os ex-votos numa visita prosaica a um museu do Recife.

Renato Valle fala: “Passei a visitar museus e galerias e, em 1984, no Museu do Homem do Nordeste, me deparei com um conjunto de ex-votos de madeira. Fiquei muito impressionado. Em uma visita posterior ao Museu do Estado de Pernambuco, me deparei com outro conjunto de ex-votos. Aquilo não me saía da cabeça”.

Texto expositivo: Sem nunca ter visto antes esse tipo de objeto arraigado ao catolicismo popular, o artista primeiro se deixa sequestrar sensorialmente pela enorme capacidade expressiva, em contraste com a sintaxe extremamente econômica das estratégias escultóricas: linhas rápidas e golpes de goivas improvisados sobre refugos de madeira. Pequenas fendas, buracos e depressões capazes de conotar, mais que feições, subjetividades. Intenções, sofrimentos, martírios, superações. Em grandeza comunicacional, uma simplificação de formas a lembrar a pintura de Modigliani, o italiano que inscreveu suas figuras alongadas - olhos, bocas e feições pinceladas em traços econômicos, longilíneos - na arte moderna do começo do século 20.
Lévi-Strauss informava que, mais que utilidade, o objeto guarda a memória. Aparente matéria inerte, a coisa concentra a ética de seu tempo. Ao perceber a dimensão sacra do objeto, Renato Valle, ainda que não tivesse plena consciência da aproximação, vivia uma espécie de teofania. Um tipo de aproximação íntima com uma expressão material do divino.
Jovem, em início de carreira, o artista ganhava nos objetos votivos uma de suas obsessões, um dos elementos mais recorrentes de sua gramática visual e, embora desconfiasse menos ainda à época, o vértice de sua futura série Diário de votos e ex-votos - um de seus mais marcantes trabalhos encadeados, uma das séries de maior contundência vibracional da arte contemporânea brasileira.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de temas e técnicas variados), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Trinta e dois desenhos em grafite, Rostos, pessoas de braços abertos e partes do corpo, dispostos em quatro linhas e oito colunas. Na primeira linha, da esquerda para a direita, há um rosto arredondado de um homem triste com as bochechas caídas; uma mulher nua, pequena e rechonchuda, de braços abertos; um pé inchado com quatro dedos gordos e deformados; um dente com parte da coroa carcomida; um homem nu, com braços curtos e assimétricos abertos; vários ossos na horizontal ligados por um maior na vertical, que lembram o esqueleto de um peixe; um jovem negro e magro, com casaco escuro e calça clara; e um homem careca, com o topo da cabeça achatado e pescoço grosso, com um coração protuberante sobre o peito. Na segunda linha há uma vulva com poucos pelos entre duas coxas; uma mão escura com dedos grossos virados para cima; uma pessoa escura e gorda com os braços cruzados; o rosto de uma bebê com um laço no cabelo e boca aberta; um rosto escuro e disforme; um rosto de uma mulher de cabelo Chanel de perfil para a direita; uma boca aberta com dentes quebrados; e um pênis com um saco escrotal grande, de perfil para a esquerda. Na terceira linha há um bebê em posição fetal virado para baixo; o rosto de uma criança com uma touca; um cérebro; uma mulher nua e corpulenta com os braços abertos; uma mulher gorda de costas com os braços abertos; um coração com quatro artérias acima e um buraco à esquerda; o rosto de um homem levemente virado para cima com uma boca grande aberta e com dentes quebrados; e uma mão com o punho fechado. Na última linha há um rosto de um homem narigudo de perfil para a esquerda com um curativo na orelha; duas canelas grossas e pés descalços; o rosto de um homem careca com sobrancelhas e olhos pequenos levemente virado para cima; um olho caído com olheira e um nariz grande; dois peitos grandes, assimétricos e pontudos e uma barriga protuberante; um rosto todo pintado de preto; uma perna enfaixada de perfil para a direita; e por fim, uma pessoa com um chapéu escuro, uma mancha preta no olho direito, nariz largo e boca carnuda.

Renato Valle fala:“Foi uma espécie de fascínio: a simplificação das formas, a força na expressão, sobretudo no dos feitos em madeira. Muitos deles são esculturas de alta qualidade. Depois, percebi que o ex-voto me atraía não só por questões estéticas, mas por uma potência espiritual. Descobri que, quando eu trabalhava um ex-voto, era como se tivesse fazendo um tsuru, o origami que representa um pássaro sagrado do Japão, depositando no objeto que está sendo feito “votos”. O Diário de votos e ex-votos traduziria essas duas experiências humanas: drama e esperança”.

Texto expositivo: Da observação como exercício e disciplina, Renato volta aos museus, munido de grafite e papel. Diante de ex-votos de várias épocas no acervo, realiza uma série de desenhos de investigação. Assume os objetos como pontos de partida da breve série de pinturas Alguns objetos de adoração I, II e III , três telas (94 por 70 centímetros, cada), de 1985. Cada pintura, na verdade, consiste num conjunto de escaninhos (um com quatro; o segundo, com nove; o último, com dezesseis nichos, perfazendo estantes) em que cabeças, bustos, pernas e ventres estão guardados. Figuras arredondadas, de volumetria a distanciá-las do fundo. Tristemente estáticas, personagens ostentando curativos e (pouco) escondendo feridas, deformações, chagas. Na estratégia pictórica, como lembra o professor Agnaldo Farias (2024. p. 84), “as figuras são brancas como gesso, ou como cadáveres, efeito sublinhado pela frialdade do fundo azul de todas elas”.

Imagem de obra: Alguns objetos de adoração I, II e III, 1985. Óleo sobre tela. Políptico: 94 por 210 centímetros (total). Audiodescrição: Três quadros verticais do mesmo tamanho, com molduras marrons. Cada um deles tem quatro, nove e seis imagens, respectivamente. São pinturas retangulares, de várias cabeças, bustos e algumas partes de corpos humanos, sobre fundo azul. O quadro “Alguns objetos de adoração I”, primeiro à esquerda, está dividido em quatro retângulos do mesmo tamanho, dois acima e dois abaixo. São cabeças brancas e carecas, com olhos pequenos, nariz grande e boca pequena e cinza. A cabeça à esquerda está de perfil para a esquerda, a da direita está de frente.
Abaixo, a da esquerda está de perfil para a esquerda, com a cabeça enfaixada e a outra, de frente, com esparadrapos nos olhos; ambas com um buraco vermelho no pescoço. O quadro do meio, “Alguns objetos de adoração II”, é composto por três linhas e três colunas, com pinturas do mesmo tamanho entre elas e menores que o quadro da esquerda. Na primeira linha, há um homem com o rosto redondo, olhos caídos e nariz e boca pequenos, com uma deformação circular atrás da cabeça; outro homem com o rosto redondo, olhos, nariz e boca pequenos e um grande abscesso na testa; e um homem de perfil para a esquerda, com olhos, nariz e boca pequenos e uma mancha retangular e escura sobre a região da orelha. Na segunda linha, há um homem careca, olhos pequenos e nariz grande, com um buraco no lugar do braço; parte do corpo de uma mulher, visto do umbigo até as coxas, com um retângulo mais escuro sobre a vulva sem pelos; e parte de uma perna grossa, com um retângulo claro sobre uma ferida vermelha na canela e unhas do pé pintadas de vermelho. Na terceira linha, há um homem de cabelos curtos com entradas, olhos pequenos, nariz grande e boca pequena; um homem com a cabeça oval, achatada, olhos, nariz e boca pequenos e um coração vermelho destacado por um quadrado mais escuro; por fim, um homem com olho pequeno, nariz grande, pontudo e boca pequena e um retângulo mais escuro sobre a região da orelha. À direita, o quadro “Alguns objetos de adoração III” tem quatro linhas e quatro colunas, com as menores pinturas entre os três quadros e dimensões iguais entre elas.
Na primeira linha, há um homem careca com os braços cortados; um homem gordo de perfil para a direita; uma cabeça oval de um homem de cabelos curtos e pretos, com olhos, nariz e boca pequenos; e um corpo de frente com braços e pernas cilíndricos. Na segunda linha, há uma cabeça com franja, cabelos longos, olhos esbugalhados, boca pequena e pescoço comprido; o busto de um homem careca de perfil para a esquerda; um homem careca com óculos de grau redondos; e uma pessoa de perfil para a esquerda com cabelos longos, olhos pequenos, nariz reto, queixo proeminente e pescoço comprido. Na terceira linha, há o torso de um homem sarado, com a cabeça pequena e os braços cortados; um homem com sobrancelhas e olhos pequenos, nariz retangular e bigode fino; um homem de cabelos curtos, repartidos ao meio, com olhos, nariz e boca pequenos e pescoço grosso e comprido; e o busto de um homem com os braços amputados, com a cabeça oval e careca. Na última linha, há um busto de perfil para a direita de um homem de cabelos curtos, olhos pequenos e nariz grande; um homem careca visto do peito para cima, com olhos pequenos, nariz largo, boca pequena e peitos caídos; uma cabeça careca de um homem com olheiras, nariz retangular e boca pequena; e, por fim, a cabeça de um homem de frente com olhos, nariz e boca pequenos e pescoço grosso e comprido.

Texto expositivo: A estratégia dos nichos seria novamente acionada numa série de pinturas com oratórios, realizada em anos posteriores. Confrontando cotidiano e religiosidade, por exemplo, surge a série de óleos sobre telas Natureza-morta com ex-voto I, II e III. Datadas do ano de 1994, as três telas trazem os ex-votos em polípticos ao lado de elementos banais como frutas (pedaços de melancia, bananas, um coco verde aberto com canudo, pronto para ser consumido). Em 1998, dezenas de figuras votivas são ordenadas numa impressionante composição de desenhos de grafite sobre papel numa composição, em alusão ao símbolo mais caro ao cristianismo. Chama-se Crucifixo. Numa série anterior, de 1986 e 1987, sacrários alternam maquetes de rosto em madeira e, outra vez, frutas comuns no cotidiano nordestino: cocos, bananas.

Imagem de obra: Natureza morta com ex-votos I, 1994. Óleo sobre tela. 65 por 58 centímetros. Audiodescrição: Pintura de fundo verde-claro, dividida em cinco retângulos verticais, dois maiores na parte superior e três menores abaixo. No retângulo acima e à esquerda, há a cabeça de uma mulher de perfil para a direita. Ela tem pele marrom, cabelos longos, pretos, penteados e abaulados nas pontas, rosto oval e comprido, sobrancelha fina, olho pequeno, nariz longo e boca pequena. No retângulo à direita, há um homem do mesmo tamanho e de fisionomia semelhante, de frente para ela. Ele tem cabelos pretos, curtos, rentes a cabeça, com uma entrada na parte da frente, sobrancelha fina, olho pequeno, nariz longo, boca pequena e orelha longa. Abaixo, no retângulo à esquerda, há uma cabeça ovalada e careca, de frente, com a pele marrom, sobrancelhas finas, olhos pequenos, fechados e inchados, nariz fino e longo e boca pequena. No retângulo do meio, há um pedaço de mamão com caroços. E, por fim, no terceiro retângulo à direita, tem uma mão de pele negra, com os dedos esticados para cima e as linhas da palma bem-marcadas.

Imagem de obra: Crucifixo III, 1998. Grafite sobre papel e madeira. 86,7 por 186 centímetros. Audiodescrição: Uma cruz composta por dezesseis desenhos de partes do corpo, em tons de cinza, retangulares e verticais. A parte vertical da cruz tem duas colunas, cada uma com sete desenhos. Em cada lado dos desenhos da segunda fileira, há um desenho de uma mão que forma os braços da cruz. A mão da esquerda está com os dedos juntos e apontados para cima e a da direita com os dedos separados, apontados para cima, com o anelar e o mínimo amputados. No alto da cruz, na primeira linha, à esquerda, há o rosto de um homem careca, com sobrancelhas e olhos pequenos; e à direita, há uma cabeça enorme, com olhos, nariz e boca pequenos. Na segunda linha, há um rosto deformado, com um calombo na cabeça, olhos pequenos, nariz grande e largo e boca pequena e; ao lado, uma cabeça achatada na parte de cima, com o nariz grande e triangular. Na terceira linha da trave horizontal, há duas cabeças com cabelos grandes e lisos, olhos pequenos, narizes longos e pontudos e bocas pequenas. A da esquerda está de perfil para a direita, e a outra tem os cabelos repartidos ao meio. Na quarta linha, há um tronco distorcido de um homem, com a cabeça grande e achatada, olhos pequenos, nariz grande, peitos caídos e braços sem mãos. À direita, há uma grande cabeça não realista, de perfil para a esquerda, cabelos curtos e lambidos, olhos pequenos, nariz grande e boca para dentro. Na quinta linha, há uma cabeça reta no topo, olhos pequenos, nariz comprido e retangular e boca pequena. Ao lado, uma mão com os dedos apontados para cima, com unhas escuras. Na sexta linha, há um busto de perfil para a direita, com um pescoço cilíndrico comprido, cabeça careca, olhos, nariz e boca pequenos. Depois, uma cabeça reta no topo, olhos pequenos, nariz fino e comprido e boca pequena. Por fim, na base da cruz, na sétima linha, há duas imagens de canelas grossas e pés. A da esquerda está perfilada para a esquerda, com a canela enfaixada, e a da direita, de frente, com alguns calombos pontudos.

Texto expositivo: Num jogo de sentidos, a “natureza-morta” substitui a imagem de Cristo ou de santos - todos, obviamente, mortos. Podem sugerir tanto a dimensão sagrada do cotidiano – ou, em mão inversa, a banalização mundana do sagrado. O ex-voto , como tema ou forma, ia se aderindo à subjetividade do artista.

Renato Valle fala: “Em 1998, fiz dezenas de pinturas e desenhos de ex-votos , não mais de observação. Eram reelaborações, algumas vezes, a ‘figura humana’ parecia se confundir com um ex-voto”.

Texto expositivo: O ex-voto se impunha como obsessão. De inquietação criativa até o incômodo. Renato Valle fala: “Pensei em fazer alguns milhares deles como forma de ‘expurgá-los’ do meu repertório”.

Texto expositivo: Renato Valle aprofunda, então, uma série de estudos, tamanhos e montagens distintas sobre o tema. Até o tamanho diminuto, de 5x5 centímetros, prevalecer. Quando, em 2002, é divulgado um edital para bolsas de pesquisa e criação dentro da programação do 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, Renato se propôs a um projeto de expurgo. Renato Valle fala: “Uma verdadeira penitência”. Texto expositivo: realizar uma série de cinco mil (!) desenhos sobre, ou a partir de, ex-votos. Aprovado pelo edital, o projeto se chamava Santa Quitéria, nome de uma antiga capela de peregrinações nos arredores de Garanhuns, cidade de gados, couro e enorme produção leiteira, no Agreste de Pernambuco.
Mas o investimento se tornava decepção. Renato Valle fala: “Achava eu que um ambiente como aquele serviria como estímulo para o trabalho, mas o efeito foi o posto”.

Texto expositivo: Católico desde sua anexação violenta ao Ocidente como colônia portuguesa nesta margem do Atlântico, o Brasil se tornou viável ao projeto colonialista tanto pelo massapê úmido da cana-de-açúcar, como pelo empenho militante da Santa Igreja em promover sua cruzada nos trópicos. Um catolicismo tórrido e bronzeado, capaz de gerar uma ampla cultura material da fé propalada pelo mundo ibérico. No Nordeste do Brasil, objetos votivos são pedra de assento da fé popular brasileira.
É o que Renato Valle encontra ao peregrinar para o Santuário de Santa Quitéria de Frexeiras, uma pequena igreja como satélite no sítio localizado no município de São João, antigo distrito de Garanhuns, propriedade de uma família de imigrantes portugueses que, há mais de 300 anos, ali fixaram uma imagem da santa, a quem se atribui a proteção aos angustiados e deprimidos. Com a capela, a crença nos milagres de recuperação e cura deu início às romarias.
Peregrinações, aliás, nem sempre sob bençãos plenas da representação local da igreja em função dos excessos mundanos (bebedeiras, brigas, eventual prostituição) em meio às manifestações de fé.
Com o projeto de pesquisa aprovado, o artista encampa o programa de desenvolver sua residência em Santa Quitéria. Etnograficamente, estudar os ex-votos em lugar que "fossem vivenciados com fé e verdade”. Encontra as cenas esperadas de manifestação da fidúcia popular. Fiéis rastejando de joelhos, gestos talhados em súplicas e graças. Comércios de toda a sorte de talismãs e cacarecos. Santinhos e escapulários. Crianças com suas famílias se alimentando de restos pelo chão mais lamacento que de costume, o barro viscoso devido às chuvas temporãs. Encontra também o que não espera: a fé em seu reverso. Do mezanino dentro do templo de onde tudo via em volta, percebeu que, depois de depositados em promessa, os ex-votos eram retirados do altar para serem, de novo, depositados nas bancas da própria igreja. Desprezados como depositários recentes da fé para, reabilitados, serem reapresentados como produtos. Um ciclo contínuo de reciclagem da devoção.

Renato Valle fala: “Criei uma expectativa grande e caí no desencanto. Aquilo parecia coisa da Idade Média. Perdi o interesse. A relação com o ex-voto, ali, era outra coisa. Presenciei miséria e exploração da fé. O Diário de votos e ex-votos traduziria essas duas experiências humanas: drama e esperança”.

Texto expositivo: A revolta plasmada sobre a exploração da fé de gente humilde e crédula paralisa a capacidade de produção da série. São cerca de dois meses sem rabiscar qualquer traço. As cenas, contudo, lhe tumultuavam a memória.
Nutriam o desejo de expurgo dos ex-votos do pensamento arranhado. Depois do hiato traumático na produção o projeto virava o Diário de votos e ex-votose a série Cristos anônimos .

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção dos primeiros desenhos), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Nove desenhos de rostos e partes do corpo disformes, na técnica de grafite sobre papel, dispostas em três linhas e três colunas. À esquerda, na primeira linha, há um rosto de perfil para a esquerda, com os olhos e a cabeça enfaixada; o rosto de um homem gordo e calvo com o topo da cabeça achatada, tem sobrancelhas delineadas, olhos pequenos, nariz grande e boca pequena e um pescoço grosso, todo enfaixado; e a ponta de um pé escuro com unhas claras. Na segunda linha há um braço dobrado com a mão virada para dentro, apoiada no chão; um rosto disforme de perfil para a direita com um olho pequeno e um nariz cilíndrico que vai da testa até o queixo; e um corpo nu disforme com a cabeça careca, braços grandes em arco com mãos pequenas e malformadas, costelas marcadas, um mini pênis e pernas grossas e cilíndricas. Na última linha, há uma mão com os cinco dedos cortados; uma cabeça assimétrica e careca, com olhos e nariz pequenos, boca fina e torta para a esquerda; e, por fim, um rosto gordo de perfil para a direita, com cabelos em coque, olho, nariz e boca pequenos e um pescoço grande e grosso.

Imagem de obra: Cristos anônimos V, 2004. Impressão a jato de tinta, 45 por 28,27 centímetros. Audiodescrição: Uma composição com cinquenta e quatro desenhos, em tons de cinza, distribuídos em seis colunas e nove linhas. Nas duas colunas centrais e nas terceira e quarta linhas, há desenhos que se destacam e formam uma cruz: são bustos de homens com as cabeças distorcidas e desproporcionais, algumas achatadas, grandes, ovais, com olhos pequenos, narizes grandes, triangulares finos ou compridos que estão com os braços cruzados ou com as mãos sobre o peito ou rosto. Ao redor da cruz, há desenhos repetidos de Jesus Cristo, com os cabelos soltos e semblante sereno, ele usa uma túnica clara, levanta a mão direita com os dedos indicador e médio apontados para cima e, com a outra, mostra o brilhante Sagrado Coração, com uma coroa de espinhos no centro do peito.

Texto expositivo: A pesquisa iniciada pelo interesse escultórico em ex-votos de madeira ganhava desdobramento como diário pessoal. Recobrado o impulso, tipos diferentes de grafites, palitos de churrasco para o desenho em baixo relevo, variação entre linhas mais simples e traços complexos, contrastes de luz e sombras haviam já preenchido cerca de quatro mil desenhos com variações de ex-votos desde as fases anteriores do trabalho.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção dos primeiros desenhos), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Nove desenhos de rostos e partes do corpo disformes, na técnica de grafite sobre papel, dispostas em três linhas e três colunas. À esquerda, na primeira linha, há um rosto de perfil para a esquerda, com os olhos e a cabeça enfaixada; o rosto de um homem gordo e calvo com o topo da cabeça achatada, tem sobrancelhas delineadas, olhos pequenos, nariz grande e boca pequena e um pescoço grosso, todo enfaixado; e a ponta de um pé escuro com unhas claras. Na segunda linha há um braço dobrado com a mão virada para dentro, apoiada no chão; um rosto disforme de perfil para a direita com um olho pequeno e um nariz cilíndrico que vai da testa até o queixo; e um corpo nu disforme com a cabeça careca, braços grandes em arco com mãos pequenas e malformadas, costelas marcadas, um mini pênis e pernas grossas e cilíndricas. Na última linha, há uma mão com os cinco dedos cortados; uma cabeça assimétrica e careca, com olhos e nariz pequenos, boca fina e torta para a esquerda; e, por fim, um rosto gordo de perfil para a direita, com cabelos em coque, olho, nariz e boca pequenos e um pescoço grande e grosso.

Texto expositivo: Tratados em volumetria que faz os objetos saltarem da superfície planar para o real - uma das constâncias no traço do artista - os objetos votivos apareciam em suas variações recorrentes na fé popular do Nordeste: bustos, cabeças, pés, mãos e genitálias purgados para a saúde pela devoção. Pequenos totens em dimensões mais que materiais, fenomenológicas.
A exaustão técnica no limite da consternação pessoal até que, outra vez, a experiência vivida se lhe impôs.

Imagem de: Obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de bustos, cabeças, pés, mãos e genitálias), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Dezesseis desenhos de partes do corpo, em grafite sobre papel, dispostos em quatro linhas e quatro colunas. À esquerda, na primeira linha, há o busto de um homem de frente, com o topo da cabeça reta, nariz grande, pescoço e ombros largos, braços grossos e curtos, dedos grossos, peitos salientes e costelas marcadas; uma canela e um pé descalço, de frente; o rosto de um homem com expressão triste, com o topo da cabeça reto, cabelos escuros, curtos e lisos, sobrancelhas grossas, olhos pequenos, nariz grande e boca pequena; e uma bunda e coxas esquisitas. Na segunda linha há uma mão com dedos finos flexionados, virada para a direita; a cabeça de um homem careca, levemente inclinada para trás, que tem nariz enorme e triangular, olhos e boca pequenos; um pé gordo com um furo no dorso; e um homem com o topo da cabeça reto, com traços finos e camisa escura, levemente virado para a esquerda. Na terceira linha há o rosto de um homem em formato retangular, sobrancelhas, olhos, boca e orelhas muito pequenos, com nariz enorme e retangular; depois, um pênis grosso e dois testículos redondos, um de cada lado, à frente das coxas; uma mão com o mindinho e anelar cortados e os outros dedos para cima; e um rosto arredondado, careca, com olhos muito pequenos, nariz e boca pequenos, bochechas grandes e pescoço grosso. Na última linha há dedos da mão entreabertos, apontados para cima; um pé descalço e uma canela muito grossa, de frente; uma vulva grande com pelos em cima, coxas e bunda abertas; e, por fim, um homem com expressão séria, de cabelos curtos, com entradas, um corpo largo e ombros largos próximos às orelhas, que usa uma camisa escura, de mangas compridas com dois bolsos.

Texto expositivo: No meio do percurso, Renato Valle encontra uma página do Ministério da Justiça sobre crianças desaparecidas. Desde a primeira linha da leitura, já lhe parecia impossível negligenciar as revelações. Investido de expediente investigativo próprio, lança mãos de recursos jornalísticos. Imprimia os relatos, observava as feições de infantes assassinados em processos de pesada crueldade. Voltar já lhe era impossível. Cada relato lhe parecia um pedido incontornável de socorro e de escritura da face.
Em suas diligências, o artista depara-se com a história de uma menina morta na periferia do município de Paulista. Estrangulada pelo ex-namorado da irmã como vingança pelo término do relacionamento. Nos autos do Ministério da Justiça, encontra a foto de outra garota. Fornecida pela família, era um antigo retrato amassado. Perturbava-lhe o registro: como uma criança, um ente em crescimento, havia sido tão brutalmente assassinada e a única averbação visual de seu rosto estava guardado como papel de embrulhar prego, amarrotado, coisa qualquer numa gaveta esquecida? Silenciosamente, o artista assume o compromisso de devolver ao público o rosto dessas infâncias trucidadas.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de crianças), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Nove desenhos de crianças em grafite sobre papel, dispostos em três linhas e três colunas. À esquerda, na primeira linha, há um menino, de pele escura, com um quepe de marinheiro, escrito: “Marinha do Brasil”. tem cabelos curtos e pretos, sobrancelhas finas, grandes olhos e boca entreaberta; outro menino com cabelos curtos e espetados, traços finos, usa uma faixa clara na testa e uma camisa clara; e uma menina com cabelos ondulados, soltos, duas mechas menores sobre a testa, olhos puxados e pequenos, nariz largo e boca carnuda. Na segunda linha, há uma menina com franja e cabelos lisos, amarrados acima da cabeça, com quatro rabinhos de cavalo; um bebê branco e bochechudo, com uma touca escura; e um menino negro de cabelos curtos, nariz arrebitado e boca carnuda, com uma camisa clara de gola. Na última linha, há uma menina com o corpo de perfil para a direita e o rosto levemente virado para a frente, tem cabelos longos, lisos e escuros, nariz e boca finos, sorri mostrando os dentes e usa camiseta branca; um menino de boné, com a cabeça levemente inclinada para a esquerda, tem o nariz largo e boca carnuda; e, por fim, uma menina de cabelos ondulados, volumosos e longos, olhos puxados, nariz largo e chupeta na boca.

Texto expositivo: No ano de 2003, Renato Valle passa a construir o enorme painel composto de cinco mil diminutos desenhos – 25 centímetros quadrados cada um. Além das cabeças e bustos mais claramente associados aos ex-votos, o conjunto de desenhos expunha uma fase mais cruelmente realista com os rostos, reproduzidos ou fabulados, do infanticídio brasileiro. Avesso a uma arte explicitamente engajada a qualquer movimento, sua obra, inegavelmente, expurga o ativismo inevitável. Ali estão os rostos desses símbolos concretos da diáspora infante e, num exercício maior de quem vai ao inferno sem medo de enxofre, esboços dos rostos desses algozes . Vários deles, numa recorrência à literatura espírita, retratados como ovóides - criaturas de espírito impreciso em corpos ausentes.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de crianças e oito algozes), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Dezesseis desenhos de oito crianças e oito corpos amorfos, na técnica de grafite sobre papel, dispostos em quatro linhas e quatro colunas. À esquerda, na primeira linha, há um menino branco, com traços finos, de cabelos lisos, pretos e curtos, caídos sobre a testa, ele sorri sem mostrar os dentes; um corpo preto disforme, careca, com olhos fundos, braços e pernas grandes e gordos; uma criança negra de perfil para a direita, tem cabelos longos e lisos, usa uma tiara clara no cabelo e tem traços finos; e um corpo disforme, careca, com ombros altos, braços grossos, pernas gordas e arredondadas e pés pequenos. Na segunda linha, há um rosto disforme com quatro olhos, um nariz enorme e uma língua pendurada grande, granulada e escura; uma menina branca de cabelos curtinhos, sobrancelhas delineadas, nariz arredondado, boca carnuda e escura , está com camisa em estampa, que imita pele de girafa; uma mulher cadavérica com cabelos longos e lisos, boca desdentada aberta e braços cruzados com unhas pretas; e um menino negro sorridente com uma boina xadrez, que tem sobrancelhas delineadas, olhos caídos, nariz largo, boca grande com gengivas salientes e dentes grandes. Na terceira linha, há uma menina com o rosto levemente virado para baixo – ela é branca, tem cabelos escuros e lisos, corte Chanel, usa um diadema claro com lacinho, tem traços finos e usa camisa clara com gola; o rosto de um homem negro, magro, careca, levemente de perfil para a esquerda, com olhos pequenos, nariz largo e boca caída com poucos dentes; um menino negro de cabelos curtos, sobrancelhas delineadas e olhos borrados, com a mão esquerda próxima à boca; e um rosto distorcido de um homem careca, de perfil para a esquerda, tem testa protuberante, olho pequeno, nariz enorme com calombos, pescoço longo e papudo, e boca pequena, tampada com uma mordaça presa atrás da cabeça. Na última linha há o desenho escuro de um homem calvo, sobrancelhas grossas, olhos fundos e tortos, bochechas caídas, braços musculosos cruzados; uma menina de cabelos lisos, abaixo dos ombros, olha levemente para baixo, tem traços finos e usa uma camisa branca; um menino negro de cabelos curtos, testa grande, sobrancelhas finas, nariz arrebitado e boca grossa com alguns dentes à mostra; e, por fim, uma cabeça distorcida, de perfil para a esquerda, sem cabelo, tem um nariz enorme, com calombos, bochecha caída, orelha grande, boca pequena e um pescoço gordo com várias bolsas de gordura.

Texto expositivo: Na repetição esquemática acionada como reforço retórico, as figuras se estruturam em linhas e colunas num monumental painel de um incontornável estremecimento visual . De longe, uma agregação de contrastes e volumes entre claro e escuro. Ao nos aproximarmos, percebemos a série de figurações, como as diminutas pinturas de guerra de Goya, cujos rostos encerram, por si, narrativas desafiantes do verbo.
As faces dessas crianças são divididas em dois grandes tombos: "Crianças não identificadas " e "Crianças desaparecidas ". No conjunto de cinco mil desenhos, não chegam a 5% do todo. São 243 retratos de crianças.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de crianças não identificadas), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Quatro desenhos de crianças, na técnica de grafite sobre papel, dispostas em duas por duas linhas. E colunas. Acima, à esquerda, há uma bebê negra, de cabelos escuros e curtos, com uma faixa clara na cabeça, sobrancelhas e olhos pequenos, nariz largo e boca carnuda. Está com o braço direito esticado na frente do corpo, para a esquerda e usa camisa de manga comprida clara. Ao lado, há um homem negro, levemente de perfil para a esquerda, cabelos curtos, sobrancelhas ralas, olhos pequenos, nariz largo e boca carnuda, veste uma camisa clara. Abaixo, há uma mulher negra de camisa branca, tem cabelos lisos, escuros e longos, olhos pequenos, nariz grande e leve sorriso na boca pequena; Por fim, há um bebê negro, de cabelos escuros e curtos, com manchas escuras na região dos olhos, nariz e boca pequenos – está em pé, com os braços ao longo do corpo e usa camisa e calça brancas.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de crianças desaparecidas), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Quatro desenhos de crianças, na técnica de grafite sobre papel, dispostas em duas linhas e colunas. Acima, à esquerda, há uma menina séria, com cabelos ondulados abaixo dos ombros, sobrancelhas curvadas, nariz grosso e boca carnuda, usa um colar branco e camiseta preta; Ao lado, há um menino sério, sem camisa, de cabelos escuros e curtos, testa grande, sobrancelhas angulosas, nariz pequeno e boca carnuda.
Abaixo, há um menino sério com cabelos escuros, curtos, olhos pequenos e boca carnuda, com a mão direita próxima ao olho direito, olha levemente para baixo e usa uma camisa clara. Por fim, há uma menina com cabelos lisos e escuros, abaixo do ombro, sobrancelhas finas, nariz e boca pequenos, com leve sorriso que mostra os dentes.

Texto expositivo: Desaparecidas ou assassinadas, prefácios visuais a impor ritmo emocional à série e, sobretudo, a imagética de um projeto civilizatório cadavérico. Observa Agnaldo Farias: "A exposição dessa obra colossal, exposta em várias cidades brasileiras, implica em metros e metros de parede, perfazendo um desenho mural, um painel gigantesco, fundado na dor e que engolfa o corpo que se coloca diante dele" Texto expositivo: Agnaldo Farias, professor da Universidade de São Paulo e curador atento à produção de Valle. Esta fase de obras se completa com variações de figuras de Cristo, estrategicamente, em faces ou corpos abertos em cruz, dispostos em diagramas, os “Cristos anônimos”.

Renato Valle fala: “Bem antes do projeto, eu havia começado a fazer esses desenhos num formato diferente. Era de 4,5 por 3 centímetros; depois, 9 por 9 centímetros. Depois, passei a fazer outros em formatos maiores e montá-los em madeiras cortadas na forma de cruz. O conjunto de desenhos montado naquele tipo de suporte era como se cada grupo ou multidão carregasse sua cruz. Foram três montagens e, com desenhos e suportes de dimensões diferentes. No início, o foco era só os ex-votos.
Pensava nas pessoas comuns, aqueles que constroem suas vidas e realizam as coisas anonimamente, a gente simples, explorada, dos sofredores que carregam suas cruzes e que não conhecemos ou que ignoramos conhecer. Porém estão vivendo e, por mais que sejam desprezados, têm seu espaço no mundo, mesmo que na marra. Chamava esses trabalhos de Cristosanônimos”.

Texto expositivo: Entre cruzes, cristos e ex-votos estão chaves para o entendimento posterior de Renato Valle e de uma obra que não poderia inscrever-se na tradição da identidade tão cara ao modernismo pernambucano de longa duração. Sua obra não se filia a regionalismos, embora tome partido de seus extratos e circunstâncias. Não atua naquilo que se propõe a ser visto como simetria acima da história. As narrativas deste artista visual se alimentam justamente das frestas dinâmicas da realidade. Por meio de sua religiosidade, o corpo quase desarmônico da sociedade expõe as perversas dimensões políticas.
Diário de votos e ex-votos eCristos anônimos, assim, marcam um divisor de correntes caudalosas na trajetória de Renato - seu impacto retira o desenho do âmbito de linguagens marginalizadas no País. A seu modo, uma série que o inscreve como anticivilizatório contemporâneo no panorama das artes brasileiras.

Imagem de obra: Diário de votos e ex-votos (seleção de ex-votos), 2003 – 2005. Grafite sobre Papel. Políptico: 5 mil desenhos, 5 por 5 centímetros (cada). Audiodescrição: Nove desenhos de corpos, cabeças e partes do corpo não realistas, na técnica do grafite sobre papel, dispostos em três linhas e três colunas. À esquerda, na primeira linha, há uma mão escura, com os dedos apontados para cima e o indicador e dedo médio enfaixados juntos; uma cabeça careca, achatada e com um calombo, olhos pequenos, nariz longo e pontudo, boca pequena e pescoço grande e grosso; e outra cabeça achatada e careca, virada levemente para a direita, com olhos pequenos, nariz largo, boca pequena e tronco cilíndrico e grosso, sem braços. Na segunda linha há um corpo nu de um homem com a cabeça achatada, ombros largos, braços grossos colados ao corpo, dedos das mãos e dos pés protuberantes e pênis pequeno; mão com os dedos apontados para cima com o indicador e dedo médio enfaixados; e um homem com a cabeça achatada, sobrancelhas delineadas, olhos e boca pequenos, braços grossos sem mãos e um coração protuberante. Na última linha, há uma canela grossa com dedos dos pés grossos e unhas pequenas; um corpo distorcido, sem cabeça, nu e de costas, braços longos e grossos, bunda caída e pernas curtas e grossas; e, por fim, uma perna cortada no meio da coxa, com um pé esquerdo descalço vista por trás.

Imagem de obra: Cristos anônimos IV, 2004. Impressão a jato de tinta, 45 por 28,27 centímetros. Audiodescrição: Uma composição com cinquenta e quatro desenhos, em tons de cinza, distribuídos em seis colunas e nove linhas. Nas duas colunas centrais e nas terceira e quarta fileiras, há partes de corpos que se destacam e formam uma cruz. E, ao redor, há vinte e nove desenhos repetidos de um coração escuro, envolto por uma coroa de espinhos, com sangue escorrendo. Os desenhos que formam a cruz são: ossos de uma costela; um coração com artérias para cima; parte de uma perna e o joelho; uma genitália masculina com barriga protuberante; um polegar com unha escura; ossos da bacia humana; uma boca aberta com dentes quebrados e cariados; dois pulmões; um tórax masculino com peitos assimétricos e barriga sarada; ossos de cinco dedos longos e finos; um tórax com mamilos grandes; um pênis com o saco escrotal de perfil para a esquerda; um intestino humano; um coração com um vaso sanguíneo em cima e dois nas laterais; o osso sacro; parte de um rosto com dois olhos grandes com bolsas de olheira, o esquerdo com a íris branca e o outra preta e um nariz grande em formato triangular; uma bunda saliente; parte de um braço e antebraço; uma orelha; ossos da caixa torácica; um rosto cadavérico; um estômago; uma bexiga urinária; um coração com diversas perfurações; ossos finos e longos de um pé; e um cérebro.

Texto expositivo: Nos termos de Norbert Elias, civilização seria uma ideia aparelhada para o Ocidente impor às noções os conceitos reguladores que têm de si. Isto é, conceituar o mundo de acordo com seus parâmetros, estabelecendo hierarquias entre bom e ruim, elegível e banível, público e privado. Entre o que deve viver e o que deve morrer. O comportamento, a etiqueta e a religião, em cruzadas de várias flechas, como corpus ideais para a imposição violenta da autoproclamada civilização. Renato Valle faz a operação inversa: a partir dos campos da política e da religião, sua obra se propõe "anticivilizadora" ao expor o sangue coagulado sob os azulejos. Do tensionamento permanente com o mundo em suas dimensões, Renato Valle ergue uma obra de sussurros gritados pela inversão do conceito.
Seus desenhos, objetos ou pinceladas arranham o monolito genocida da ideia de progresso civilizatório. Embora prenhe do desejo de mudança do corpo social em que se desenvolve, a arte de Renato não se embriaga da consciência infantil de que irá efetivamente modificar o tecido. Tem mesmo a compreensão de certa inutilidade do objeto artístico, de sua efetiva incapacidade de mudança pontual nos sistemas regulatórios de desigualdades. Nutre-se, de maneira menos ilusória, da certeza de que, reunidas em discurso numa exposição ou publicação, suas obras podem alterar a sensibilidade de 300 ou 500 pessoas por elas atravessadas.

Imagem de obra: O ex-voto fuma um cigarrinho, 1989. Pastel seco sobre papel. 68 por 48 centímetros. Audiodescrição: Pintura de um homem de camisa preta, fumando um cigarro sobre fundo cinza-escuro. Ele tem pele branca, testa franzida, sobrancelhas delineadas, olhos pequenos e claros, com bolsas de olheira, nariz fino e longo e boca pequena e escura. Segura um cigarro à frente da boca, entre os dedos indicador e médio. Da boca e da ponta do cigarro saem fumaças esbranquiçadas.

Renato Valle fala: “Não gosto dessa história de arte engajada. Prefiro refletir no trabalho minhas experiências e vivências do que me engajar em algum movimento social e usá-lo para isso. O que gera um ex-voto é o drama de alguém enfermo, moribundo, desaparecido, prostituído, seja vivido por uma criança ou um idoso. O ex-voto é uma figura dramática. Só que, nos anos 1980, comecei a me interessar muito mais pelo aspecto plástico do ex-voto. Quando iniciei esse projeto, fui me dando conta de que minha ligação com o objeto ia muito além das questões estéticas. No decorrer do trabalho, isso foi ficando cada vez mais claro e, além disso, o ex-voto era algo recorrente na minha produção. Isso me deixava intrigado. Quis fazer uma coisa exaustiva, como que para exorcizar os ex-votos da minha vida, mas não houve jeito. Fui me aprofundando cada vez mais nessas questões. Inicialmente, o projeto tinha o nome de Santa Quitéria, porque queria desenvolvê-lo num santuário. Achava que o ambiente seria ideal para realizar os cinco mil desenhos. Depois que percebi a sua importância como símbolo em minha vida, passei a usá-lo como umexercício de religiosidade”, o motivo não era a angústia, mas o alívio de uma angústia”.

Texto expositivo: Em Renato Valle, a fé assume uma incontornável superfície política. Porque não apenas metafísica. Mas observadora das fraturas do tecido social em que se faz. Suas crianças, aqui, evocam a necropolítica anunciada por Foucault ou Achille Mbembe como partes de um estado réprobo, gerador de mecanismos por vezes sutis em distinguir os que devem morrer dos que podem viver. Uma sociedade em demissão, politicamente, de seus projetos de fé.









Do gesto-monumento Capítulo 2



Texto expositivo: Não é apenas matéria visual. A arte de Renato Valle, desde sua gênese mais íntima, se faz de desejos de transformação do corpo social no qual está inserido. Nela, sua vontade de potência se evidencia, sobretudo, no trato da figura humana e dos objetos que lhe são tão pessoais como, em simultâneo contínuo, espirituais. Ao explorar a própria subjetividade, sua obra, tão mais política seja, torna-se mais essencialmente religiosa. É na recorrência de elementos caros ao Cristianismo (cruzes, ex-votos, crucifixos), que a materialização de seus embates sobre a multiplicidade do sofrimento humano se articula. Uma religiosidade e espiritualidade imbricadas na crescente desumanização das práticas cotidianas, tensionando o desejo do artista em agir no corpo coletivo ancorado no conceito de humanidade. Para Valle, o religioso jamais será meramente metafísico.

Imagem de obra: Cancan - pretos. 2012. Objeto - Resina de poliéster, 25 por 53 centímetros. Audiodescrição: Escultura composta por sete miniaturas de Jesus Cristo com os braços abertos, joelhos semiflexionados e pés cruzados, todas pretas e iguais, sobre um fundo de madeira. As miniaturas estão suavemente inclinadas para a esquerda e levemente rotacionadas para a direita, enfileiradas e sobrepostas, com as cabeças inclinadas para a esquerda. O braço direito de cada uma delas está sobre o peito da miniatura à esquerda, e a mão, sobre o peito da seguinte.

Texto expositivo: A inversão da escala no desenho, ou seja, a adoção do grafite monumentalizado em grandes superfícies, se dá na tentativa de conferir escala adequada à complexidade das situações plasticamente trabalhadas. Emerge quando Renato Valle, logo após a repercussão dos cinco mil desenhos da série Diário de votos e ex-votos, é convidado pelo Instituto de Arte Contemporânea (IAC/UFPE) da Universidade Federal de Pernambuco, para o projeto de residência artística intitulado O artista, o processo criativo e a mediação cultural.
Ali, Valle amplia o gesto para não mais encurtá-lo. Diante e mesmo em parceria com o público, realiza desenhos em grandes escalas - obras de enorme tensionamento das questões mais caras à sua espessura poética.

Renato Valle fala: “Quando o IAC me convidou para a terceira edição de um projeto experimental, desenvolvido na gestão de Ana Lisboa, não sabia o que fazer. Aceitei, já que era experimental, melhor que surgisse algo de dentro do próprio IAC. Visitava o local, pensava, refletia... Fechava os olhos e só via as experiências do Diário, os cinco mil desenhos me deixaram viciados. Decidi então radicalizar, fazer algo que provocasse em mim uma mudança de comportamento diante do suporte e dos materiais. Pensei em papel em grande formato, mas teria que mandar buscar fora. Além disso, a maior largura era de 150 centímetros, rolo de papel. Queria algo maior.
Pensei então na lona que uso nas pinturas, até 212 centímetros, em algodão cru. Comecei, aí, a experimentar. Sem temas prévios, em cerca de um mês no Instituto, vi uma tela grande de Balthazar da Câmara, uma pintura a óleo na qual uma mulher segurando um livro estava representada. Adorei a figura daquela senhora, e não gostei nada da paisagem. ‘Entrei’ na obra e comecei a repensá-la! O que deveria fazer diante do que gosto e do que não gosto? Comuniquei a Ana que queria desenvolver uma série que dialogasse com o acervo do IAC. Com o tempo, esse acervo se ampliou para além das imagens. Passei a dialogar com as histórias contadas por funcionários, pessoas que trabalhavam lá, que por sua vez ouviram de outros. Também, como forma de provocar um comportamento novo, para mim, diante dos materiais que decidi utilizar. Com o tempo, e com o projeto se desdobrando para outras instituições, comecei a ocupar as paredes com as lonas, nem sempre sabendo o que seria usado como referência. O que Marcelo Silveira chamou a atenção por ser mais pertinente a algo não muito próprio ao desenho, mas à instalação”.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, segunda edição, 2006. MAMAM, Recife-PE. Audiodescrição: Fotografia vertical, colorida, do senhor Francisco rabiscando um desenho em uma lona branca fixada na parede. Ele está de perfil para a esquerda, levemente inclinado para frente e rabisca parte da obra “O velho de perfil”, feita coletivamente. O homem é branco, tem poucos cabelos brancos na lateral da cabeça e usa uniforme azul: camisa de gola de botões com detalhes amarelos na ombreira e um brasão da Guarda Municipal do Recife acima do bolso à direita.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, sexta edição, 2009. Movimento Pró-criança, Jaboatão dos Guararapes-PE. Audiodescrição: Fotografia colorida, horizontal, de crianças desenhando em rua de terra batida em frente à Ong Movimento Pró-Criança no bairro de Piedade. Cerca de vinte crianças, algumas com aventais, desenham o chão com líquidos coloridos – preto, amarelo, azul e vermelho – em garrafas plásticas de refrigerante. Há desenhos de formas geométricas, delineadas de preto: losangos, círculos, triângulos e quadrados, algumas sobre as outras. Ao fundo, uma grade e à direita, um muro branco.
Atrás da grade há um prédio vermelho com duas pilastras amarelas na entrada e uma placa branca e azul com a marca do Movimento Pró-Criança. Há várias crianças na frente do prédio. Ladeando o caminho, há áreas com mato.

Texto expositivo: Desde o ano de 2003, o Instituto de Arte Contemporânea da UFPE, sob a direção de Ana Lisboa, realizava o programa. Uma iniciativa de aproximar o público da arte para além da obra posta em exibição, descortinando o processo criativo do silêncio mitificado e misterioso dos ateliês. Valle é o terceiro artista a participar.
Na contemporaneidade, o desenho estava comumente usado como linguagem de estudo, transição entre projeto e obra ou, quando um fim em si, apresentado em dimensões íntimas, pequenas, quase crônicas em tom de confissão. No trabalho de restabelecer seu lugar canônico na história da arte, Valle encontra a possibilidade de, mais que retórica, tornar realidade o diálogo com os públicos. Horas de labor, centenas de grafites, escadas de apoio para alcançar a superfície agigantada da lona crua – e tornar acessíveis, em tempo vivo, as inquietações éticas e soluções estéticas vetorizantes de seu trabalho. Em pouquíssimos momentos, não apenas em Pernambuco ou no Brasil, mas mesmo no panorama da recente arte ocidental, projeto e êxito tenham sido tão bem imbricados na tentativa de elevar o desenho da usual dimensão de alcova em direção à monumentalidade.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, terceira edição, 2006. Museu Murillo La Greca, Recife-PE. Audiodescrição: Fotografia na vertical, colorida, do artista Renato Valle em uma escada de ferro desenhando em uma lona crua, presa em uma parede do lado direito. Renato está próximo ao canto de duas paredes, no 4° degrau da escada, de costas para nós. Ele segura a escada com a mão esquerda e com a outra mão desenha. A lona ocupa as duas paredes e estão completamente rabiscadas com textos de cartas manuscritas em lápis grafite.
Renato tem cabelos curtos, escuros, usa camisa de mangas até o cotovelo, azul clara, calça e par de tênis, brancos. Há um clarão nas costas de Renato, produzindo claridade e a sombra do artista na parede em que ele desenha. O teto é branco.

Obra: Canudos, Caneca, Diretas… e o Brasil não mais resiste, 2006. Grafite sobre lona crua. 212 por 773 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite sobre uma grande lona clara de um homem negro e magro, com cerca de 60 anos, deitado no chão, de barriga para cima. Está de olhos fechados, com a cabeça à direita e as pernas esticadas à esquerda. Ele tem cabelos curtos, sobrancelhas grossas, nariz largo, barba e fortes marcas de expressão. Os ossos das costelas estão aparentes e ele usa apenas uma bermuda. Está com os cotovelos apoiados no chão, os ombros levantados e a cabeça levemente inclinada para trás.

Texto expositivo: Vários daqueles desenhos são feitos sob interferência ou parcerias com os passantes, funcionários e estudantes. Inicialmente sem rota pré-estabelecida, o artista encampa a visita, em forma de releitura pessoal, crítica, embora contemplativa e elogiosa, do acervo do próprio IAC.
Epílogo do romance, óleo sobre tela de Balthazar da Câmara, de 1930, é a primeira obra visitada. O volume da composição original é suprimido, elementos apagados e a obra ressurge pelo grafite de Renato em dimensão alargada (2,63 por 2,11 m, diante dos 1,30 m por 1 metro do original). A figura de uma senhora, protagonista da cena, é agora apresentada em planos pretos e chapados no vestido cobrindo seu corpo sentado numa cadeira quase sugerida, um esboço de móvel, com o rosto taciturno e reflexivo estruturado em contornos rígidos.
Depois do apocalipse de Samico (2005, grafite sobre lona crua, 2,63 por 2,11 m) é a segunda releitura da série. A partir de uma xilogravura de Gilvan Samico, de novo, e aqui refeito de maneira expressivamente geometrizada, um rosto de mulher.

Imagem de ação: Projeto Diálogos, primeira edição, 2005 – 2006. IAC/UFPE, Recife-PE. Audiodescrição: Foto de um homem deitado de lado, que desenha uma figura feminina com traços exagerados e geometrizados, em uma grande lona bege na parede branca. A mulher é vista da altura do peito e está perfilada para a direita. Tem cabelos pretos, volumosos e abaulados na ponta, acima dos ombros. Tem sobrancelha preta, delineada e arqueada, olho grande, olheira inchada, nariz retangular, reto, comprido e pontudo, boca fina e escura e queixo curvado, mais retraído que o restante do rosto. Na região dos olhos, da bochecha e da boca, há rugas e linhas de expressão. Ele desenha a blusa, ainda transparente, com estampa de traços curvos, semelhantes a arabescos. O desenhista tem pele clara, cabelos curtos e castanhos, veste camisa verde, calça jeans e tênis branco. Ele está com a cabeça à esquerda, sustenta o peso do corpo no braço esquerdo apoiado no chão e desenha com a mão direita. Ao lado dele, à esquerda, há um pincel e uma pequena caixa azul sobre um piso de mármore.

Texto expositivo: A obra Sinhá Ricarda (2006, outro grafite sobre lona crua, 3,04 por 2,11 metros) é mais uma figura feminina. Desta feita, sugerida por densidades diferentes do grafite em golpes rápidos sobre a lona que por contornos - uma figura inacabada, cujas formas imprecisas confundem-se com a disformidade de suas angústias e espiritualidade.
Entre exercícios da filosofia da ação e das formas, há ali potentes comentários silenciosos sobre a sociedade no qual o artista se desenvolve: o Recife senhorial, onde o açúcar histórico viabilizou o projeto colonial português. Uma cidade, como embrião de Brasil, que teve na divisão, a partir da linha de cor da pele, a fronteira de suas populações entre aqueles que sustentam e provam do doce ou do amargo deste açúcar. Se a anterior série de cinco mil pequenos desenhos, elaborados à exaustão, do Diário de votos e ex-votos cumulam sua penitência mais íntima, os gigantescos desenhos em lona da série Diálogoscompartilham significados e urgências em agir sobre as fraturas político-existenciais do cotidiano. Cotidiano cuja materialidade é ainda elaborada por reminiscências contínuas deste passado historicamente açucarado.

Imagem de obra: O cachorro morto, 2009. Grafite sobre lona crua. 212 por 405 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite sobre uma grande lona clara, de dois cachorros mortos, um realista, à esquerda, e outro com traço infantil à direita. No topo, com caligrafia infantil, a frase manuscrita: “na hora chuva a gente de baixo da chuva pulando pintando vimus um cachorro morto. Estava vedido”. O cão à esquerda está na vertical, deitado com a cabeça para cima, de perfil para a direita. O corpo está em decomposição, rígido, acinzentado, com as costelas e ossos das patas aparentes. O outro cão, de perfil para a direita, é um desenho simples, de poucos traços, corpo alongado, duas orelhas finas, dois “X” no lugar dos olhos e um rabo com apenas uma linha e um rabisco na ponta.

Texto expositivo: Ponto de grande tensão em sua trajetória, o artista incorpora, como estratégia discursiva, figuras infantis para evidenciar distorções sociais. Em mórbida metafísica, a série Diálogoscomplexifica-se em figuras de crianças adultizadas, corporificadas como bonecos grotescos, imobilizados pelas tensões que os cercam. A beleza essencializada da infância, paradigma de pureza, distorcida no grotesco social. Como resultado da equação, vem o horror e uma estranha ternura por essas crianças transfiguradas que se destacam, diante de desenhos de temáticas diversas.

Imagem de obra: A infância interrompida, 2020. Grafite sobre lona crua. 202 por 118 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite de uma figura com a cabeça da Mônica, personagem dos quadrinhos de Mauricio de Souza, no corpo da clássica estátua Vênus de Willendorf. Mônica é uma criança de cabelos curtos, olhos e orelhas grandes, dentuça. Ela está com o semblante caído e uma lágrima escorre do olho direito. O corpo de Vênus, uma mulher adulta, nua e grávida, está levemente de perfil à direita. Os seios e a barriga são volumosos.
Os braços são finos e estão apoiados sobre os seios. Ela tem as ancas largas, vulva escurecida, coxas grossas e pés amputados.

Texto expositivo: É exemplar desta lavra Criança sentada, sob o impacto de uma determinada programação televisiva infantil (2006), um desenho cuja escala (3,65 por 4,24 metros) potencializa em metáfora a candura das dobrinhas do corpo infantil, sua pele casta e acetinada sob uma cabeça agigantada em perturbação. Pelo excesso de informação midiática contemporânea, um corpo infantil e a subjetividade que dele se projeta como que deformado pelo que é.
Desenho, aliás, inspirado numa série, formal e cronologicamente distante, do paulistano Nelson Leirner, Trabalhos feitos em cadeira de balanço assistindo televisão (1997).

Imagem de obra: Criança sentada, sob o impacto de uma determinada programação televisiva infantil, 2006. Grafite sobre lona crua. 365 por 424 centímetros. Audiodescrição: Foto de um menino de costas, diante do desenho de um bebê gigante, em grafite sobre lona, preso no alto de uma parede branca. O bebê está despido, sentado de pernas abertas e tem muitas dobrinhas nos braços, pernas e pés. Está com a cabeça, careca, levemente inclinada para baixo, e de olhos fechados. Encosta a mão direita no pênis e a outra no rosto. O menino que observa tem cerca de 3 anos, cabelos pretos, usa moletom cinza, bermuda preta e branca listrada e sandálias pretas. O piso é branco.

Texto expositivo: A filha da Monga (2005) é outra criança exemplar desta poética: trata da história de uma criança nascida sem vida e com o corpo coberto de pelos. Comovido com a história de que foi exposta, embalsamada, pelo pai, em troca de dinheiro, Valle apresenta sua frágil compleição física quase que coberta totalmente por faixas, numa leveza sugerida pela estratégia da suspensão do corpo na gigantesca superfície planar de mais de quatro metros de comprimento. Seu rosto peludo, tratado em densidades diferentes do grafite, emerge do embalsamento do resto de corpo, sugerindo a resistência da humanidade da criança rechonchudamente cândida e mórbida. Uma existência, aliás, que lhe passara a morar nas inquietações desde que o amigo artista Maurício Castro lhe contara a história de um homem que tinha por hábito exibir, como espetáculo pago, a mulher cujo corpo havia se desenvolvido, por especificidades genéticas, coberto de pelos. Ao ter a filha natimorta com as mesmas características, adotou o mesmo perverso expediente.

Imagem de obra: A filha da monga, 2005. Grafite sobre lona crua. 211 por 450 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite na horizontal de um bebê gigante deitado, com rosto peludo. A cabeça do bebê está do lado esquerdo, as costas para baixo, os braços, como se estivessem dobrados a frente do corpo, as pernas estão suspensas, com os pés para o lado direito. O corpo, a parte de trás e o topo da cabeça estão completamente enfaixados – na cabeça uma faixa passa no limite do rosto com a orelha, onde seria a costeleta, e por trás da orelha. O bebê tem a testa grande, bochecha rechonchuda, olhar caído e nariz arredondado. As faixas que cobrem o corpo embalsamado possuem tons de cinza claros e escuros.

Texto expositivo: A dicotomia horror e encantamento é flagrante em outros retratos da infância, desenvolvidos posteriormente, já fora do contexto de Diálogos. MMA BABY (3,02 por 2,08 metros, 2016) traz duas figuras de bonecos-bebês em duelo - longe de uma crítica ao esporte, uma percepção à cultura da violência na infância.
Em 2012, Renato Valle dá corpo ao desejo de experimentar a tridimensionalidade. Após uma trajetória consolidada em linguagens como desenho, pintura e gravura, o artista passa a materializar sua investigação em esculturas e objetos. É nesse contexto que surge a série Cristos e Anticristos, composta por 29 obras que dialogam entre si como engrenagens polissêmicas de um maquinário espiritual. Uma maquinaria na qual o cristianismo se entrelaça com a religiosidade própria do artista. Na adoção da tridimensionalidade, Renato Valle reencontra a fé como matéria plástica. As figuras humanas que antes habitavam o papel e a tela emergem agora do poliuretano e da resina - como se o artista lhes insuflasse o sopro do Espírito. A devoção aqui, de novo, é inquieta. Feita de prece crítica.

Imagem de ação: Pesquisa em suportes tridimensionais, 2010 – 2011. CAC/UFPE, Recife-PE. Audiodescrição: Fotografia horizontal de Renato Valle e Cloves Parísio, em uma sala, manipulando objetos sobre uma mesa. Cloves está sentado na lateral da mesa, de perfil para a esquerda, tem cabelos curtos e pretos, usa óculos e camisa amarela. Ele segura uma jarra transparente e a inclina, derramando resina em um compartimento de vidro retangular com latas de coca cola. Renato tem cabelos curtos e grisalhos, usa óculos, camisa azul e calças compridas claras. Ele está de pé, na cabeceira da mesa, voltado para Cloves, levemente inclinado para frente e segura o compartimento com as latas. Na mesa há outros dois compartimentos lado a lado, vazios, sendo um menor, bem como garrafas de plástico e outros objetos. As paredes da sala são de tijolos brancos. Ao fundo, à esquerda, há um armário de ferro cinza, um ventilador e à direita uma porta laranja aberta, com o numeral sete.
Em Cristo e Anticristo Coca-Cola,o artista encerra latas do refrigerante dentro de cruzes transparentes – relíquias profanas, bolhas de gás e poder, onde o líquido escuro pulsa (como sangue e capital). O gesto é de ironia e revelação: a mercadoria convertida em sacramento, o sagrado mergulhado na química da indústria. O altar é espelho de um mundo que adora seus próprios deuses de consumo.

Imagem de obra: Cristo e Anticristo Coca-Cola I, 2010 – 2011. Escultura, resina de poliéster e Coca-Cola. 56 por 83 por 12 centímetros. Audiodescrição: Escultura com duas cruzes semelhantes, feitas com latas de Coca-Cola cobertas por resina transparente com acabamento reto nas pontas. A cruz da esquerda está de pé, na posição tradicional, e a da direita invertida, com os braços na parte inferior da cruz. As latas de Coca-Cola são vermelhas com as letras brancas. Há cinco latas empilhadas na vertical e cinco ladeadas na horizontal. Há rachaduras e imperfeições nas superfícies.

Texto expositivo: A cruz, invertida, já não distingue o bem do mal: tudo depende do olhar e da posição de quem vê. As formas se multiplicam – brancas e negras, ásperas e lisas, opacas e translúcidas – e delas nascem grades, malhas e geometrias onde a figura da cruz se dissolve em estrutura. Cada cruz é uma célula; cada repetição, um credo. No labor do molde e da cópia, Valle descobre o ritmo de uma oração visual que se repete ao transe. O artista joga com essas ambivalências como quem constrói um novo evangelho das formas, onde o espírito habita o concreto, e o mistério se manifesta na serialidade.

Imagem de obra: Cristos e Anticristos de barro I (detalhe), 2011. Instalação, cerâmica. Dimensão variável. Audiodescrição: Duas cruzes marrom claro, de barro, com Jesus Cristo crucificado em desenho com traços simples e em baixo-relevo. A cruz da esquerda está virada para cima e a da direita invertida. Cristo tem barba longa, braços e mãos grossos, costelas e genitais à mostra, e há um buraco sobre cada mão e pé. Ele está despido e usa uma coroa de espinhos.
Centenas de cruzes são dispostas lado a lado, iguais a estas, e formam um grande painel.

Texto expositivo: Quando o Cristo se desprende da cruz, a matéria ganha movimento. A figura que antes padecia, agora dança, salta, mergulha. Nas obras Colmeia, Equilibristas e Nado sincronizado, Valle celebra o corpo liberto, o divino que respira leveza. Há humor no sagrado, e mesmo um erotismo sutil na redenção. Em barro ou resina, o Cristo é homem inteiro – com falo, desejo e ferida.

Imagem de obra: Nado sincronizado II – branco, 2011. Objeto, resina de poliéster. 18,5 por 18,5 centímetros. Audiodescrição: Escultura composta por oito miniaturas de Jesus Cristo, de braços abertos, dispostas em formato de uma estrela de oito pontas. As mãos de cada uma delas se tocam e viram as pontas da estrela. O encontro dos pés, virados para dentro, forma um pequeno círculo no centro da escultura. As miniaturas são brancas e estão sobre fundo cinza.

Renato Valle fala: “Essas reflexões que se desdobram em colmeias, grades, cruzes com Coca-Cola, enfim, diversas configurações de Cristos e Anticristos, de luzes e sombras que habitam o ser humano, caracterizado como bom ou mau pelas escolhas que faz entre essas forças, e não pela ilusão de achar que possui só bondade, enquanto a maldade está noutro lugar, ou alguém, fora dele”

Texto expositivo: Em Cristo Flagelado, o corpo transparente reluz vitral que sangra luz. Assim, o artista faz do sofrimento uma metáfora de renascimento. O símbolo da morte é convertido em dança e o peso da cruz, impulso de vida.
A contundência civilizatória dos símbolos do Cristianismo é ali reformulada em arranjos de cruzes e Cristos: ora um Cristo branco, ora um Cristo negro; ora ainda, como antes dito, um Cristo retirado da cruz, suspenso e autônomo, que convida o público a refletir sobre as camadas histórico-sociais que moldaram a fé. Nos termos do artista:

Renato Valle fala: “A ideia era discutir o ‘tipo físico’ de Jesus, pois o tipo europeu que costumamos ver é bastante questionável. Colocar o Preto e o Branco lado a lado, inverter a posição, o positivo e o negativo, o que é cristão e o que não é cristão (não pela cor, mas pela inversão da imagem), trabalhar, enfim, com os símbolos dando outros significados e, em alguns casos, criticando os que são usados para dominação”.

Texto expositivo: O humor pop, traço recorrente na obra de Valle, desloca a rigidez da imagem sacra para o terreno do humano. Suas pequenas esculturas neoconcretistas de Jesus, alternadas em preto e branco, compõem grades – metáfora de uma ambiguidade essencial: aquilo que protege também aprisiona. O que guarda também condena. A grade torna-se, assim, interseção simbólica entre religião, política, crime e encarceramento. Como observa a crítica de arte Clarissa Diniz, em texto para uma exposição na cidade pernambucana de Garanhuns (2012), os múltiplos deslocamentos, operados pelo artista, da imagem crucial do Cristianismo, descortinam suas polissemias:

Fala Clarissa Diniz: Apropriando-se de uma certa lógica pop pela utilização de imagens estereotipadas de Cristo, bem como por sua reprodução e multiplicação, Renato Valle procede em direções complementares: num sentido, anseia desmistificar o personagem Cristo, “humanizando-o” e, assim, desautorizando-o como figura de poder para, por outro lado, retomá-lo como um “homem qualquer”, ainda que singular; por outro lado, termina por criticar a própria concepção desse personagem, denunciando o esvaziamento de sua história e “ensinamentos” promovido pela hierarquização religiosa e consequente comodificação, o que ocorre para sua total desumanização.

Texto expositivo: Desde o título da série, as variações de Cristos e Anticristos evocam contrastes entre luz e sombra, amor e ódio, fé e descrença, apontando a dualidade constitutiva das instituições ocidentais. Mais do que oposições binárias, Valle expõe o mecanismo de exclusão de um polo em favor do outro – exclusão que sustenta a lógica do Cristianismo ocidental. Ao problematizar a figura de Cristo e a institucionalização religiosa, Valle humaniza e critica simultaneamente seus ícones, denunciando a mercantilização e desumanização promovidas por estruturas de poder, ao mesmo tempo em que consolida o desenho como território de experimentação estética e resistência política, mostrando que a arte pode ser um projeto de vida inteira.
Nos arranjos da série, antes que meros experimentos plásticos, inquietações se multiplicam em formas (a citada Colmeia, a Grade ou cruzes de resina cristalizada, erguidas sobre colunas de latas de Coca-Cola). Tal expediente dialoga, por exemplo, com procedimentos de uma pop arte brasileira (Cildo Meireles e Nelson Leirner, como vetores confessos), flagrando a disposição da sociedade de consumo em sacralizar o mundano ou, inversamente, transformar o sagrado em mercadoria industrial.
Nesse mesmo registro crítico, sem abrir mão do humor dos paradoxos, uma pequena escultura de parede traz a cabeça de Cristo em resina. No alto da calota craniana da figura, uma fenda permite inserir moedas e cédulas: o Cristo-Mealheiro que denuncia, de forma direta, a indústria da fé. No ano de 2017, por exemplo, o mealheiro aparecia na imagem do Jesus pregado na cruz emchrimassa, material que dá à peça grande verossimilhança com certas formas rudimentares do crucifixo, como artefato da fé popular.

Imagem de obra: Mealheiro, 2011. Escultura, resina de poliéster e dinheiro. 35,5 por 27,5 por 15 centímetros. Audiodescrição: Fotografia vertical, colorida, da escultura “Mealheiro” em uma parede branca, iluminada. A escultura remete à clássica imagem do rosto de Jesus Cristo. Sendo a cabeça de Cristo em resina de poliéster, transparente e oca. O Cristo tem rosto oval, cabelos repartidos ao meio, ondulados, na altura do queixo, sobrancelhas espessas, olhos caídos, nariz com dorso alongado, barba cheia e comprida. Dentro da cabeça, há dezenas de moedas e algumas cédulas. Na altura do olho direito da escultura, há uma cédula amarela, no esquerdo uma azul e, próximo ao nariz, outra rosa. As moedas estão concentradas da ponta do nariz para baixo, sortidas nas cores dourada, cobre e prata.

Texto expositivo: De volta à linguagem da pintura, em óleos sobre telas em que crucifixos pintados sobre mesas cobertas com toalhas colhidas ou bordadas, numa sugestão de intimidade e afeto doméstico, figuram abaixo de mãos que lhe depositam cédulas em fendas. Em fina ironia, o gesto aparece em telas diferentes, ambas realizadas entre 2018 e 2019. No quadro denominado Mealheiro 1 (Fé de menos), a cédula depositada na fenda equivale a R$2,00 – valor com o qual se comprava pouco mais de um pão no ano da execução da obra. Na denominada Mealheiro 2 (Fé de mais) figura uma cédula de R$100,00. Em ampliação de sentidos, telas e respectivos títulos nos informam haver, assim, equação diretamente proporcional entre investimento fiduciário e fé pessoal.

Imagem de obra: Mealheiro 1 (fé de menos), 2018 - 2019. Óleo sobre tela. 30 por 30 centímetros. Audiodescrição: A frente de um fundo acinzentado, uma mão de pele clara deposita uma nota de dois reais, dobrada, no topo de uma cruz marrom. Nela há a inscrição “INRI” no topo e, abaixo, a imagem de Jesus Cristo crucificado, de braços abertos. A cruz está sobre uma mesa pequena e redonda, coberta por uma toalha branca de renda.

Texto expositivo: Em texto intitulado As Escolhas de Renato Valle (2012), a artista e professora Bete Gouveia ressalta a dedicação do artista no trato da forma com ênfase em ressaltar uma função essencializada que tal forma encerraria. Segundo a qual, neste sentido. Fala Bete Gouveia: “no objeto de arte, a forma de um objeto prosaico se desenvolve segundo princípios internos, independentemente do seu conteúdo simbólico e função, como se a forma fosse dotada de um espírito próprio e possuísse uma motivação artística íntima”.

Texto expositivo: Em obras da sérieCristos e Anticristos e nosMealheiro 1 eMealheiro 2, haveria, assim, um preciosismo no tratamento das formas no sentido de conferir aos objetos verossimilhança em relação à configuração natural, nos informando a relação intrínseca entre forma e função.

Fala Bete Gouveia: “Mesmo que a evidente intenção do artista tenha sido a de perseguir conceitos vinculados a aspectos da cultura popular, ou ainda em torno de motivações afetivas, vivenciais e críticas em relação à fé religiosa e à essência das coisas, como é o caso dessas obras supracitadas, há nelas um caminho vasto no sentido da interpretabilidade”.

Texto expositivo: Ao longo da série Cristos e Anticristos, Valle recorre a situações-limite da subjetividade – a sua e a dos que o cercam – para evocar a dimensão da fé em territórios inevitavelmente políticos:

Renato Valle fala: “Há nessas ideias uma negação clara tanto da representação europeia do Cristo quanto da sua imagem, morto e ensanguentado na cruz, como expressão do Cristianismo. A cruz, assim como a guilhotina, a forca e as fogueiras, fala da crueldade humana: são instrumentos de punição, não de fraternidade ou compaixão. E, na maioria das suas representações tradicionais, ainda aparece como madeira polida, bem-acabada, como se fosse destinada ao repouso de um rei branco de olhos azuis – e não ao suplício de um bandido”.

Texto expositivo: Se em 2012, quando apresentada pela primeira vez ao público, após residência, no Centro de Artes e Comunicação (CAC), da Universidade Federal de Pernambuco, a série Cristos e Anticristos provocou reflexões a partir de debates, em 2022, quando exposta em Porto Alegre, catalisou a violência de parte mais radical de instituições neopentecostais da capital gaúcha. Autointitulados pastores, alguns homens filmaram recortes da exposição sobre aspectos da relação entre fé e política na obra de Renato Valle, sob curadoria de Lilian Mauss, em um importante centro cultural da cidade.
Desprezando trabalhos menos óbvios nesse sentido, focaram nas imagens de cruzes e cristos em arranjos além da representação clássica ocidental. Sob a acusação de satanismo e outras heresias, incitaram, pelas redes digitais, ataques à exposição. Para não apenas manter as obras a salvo, como evitar maior publicidade para o grupo fundamentalista sob o pretexto de seu trabalho, Renato resolve encerrar a exposição quatro dias antes do previsto – quando se deu a mobilização de uma live coletiva em protesto contra a mostra por membros de igrejas locais - algumas das quais, como regra, beneficiárias de isenções fiscais de seus patrimônios, doações e dízimos obrigatórios de fiéis, ou seja, motivos dos comentários críticos na obra do artista.
Quase três décadas antes, Renato Valle já esboçava, com ironia e contundência, sua crítica à aliança silenciosa entre poder eclesiástico e interesses financeiros. Em Ratos no Mosteiro (1987), o insólito se revela natural: os roedores atravessam corredores e celas religiosas sem que sua presença desperte horror ou estranhamento. Ao contrário, os bichos se integram à cena como parte legítima de um espaço que deveria simbolizar pureza e recolhimento espiritual. A metáfora é incisiva – a sujeira e a ruína tornam-se aceitáveis quando amparadas pela força institucional da Igreja. No mesmo ano, em Depois de Barlach, Valle radicaliza o comentário. Com o traço minucioso do bico de pena e nanquim, compõe uma cena em que sacerdotes e empresários se aproximam em silêncio, envolvidos em acordos invisíveis, mas de efeitos duradouros. O título remete a Ernst Barlach, escultor e desenhista alemão perseguido pelo nazismo, cujo trabalho denunciava a hipocrisia social e a conivência das elites religiosas com regimes autoritários. Valle evoca essa herança crítica para, com seus próprios meios, atualizar a denúncia das cumplicidades entre fé e capital.

Imagem de obra: Depois de Barlach, 1987. Bico de pena sobre papel. 25 por 69 centímetros. Audiodescrição: Desenho horizontal, preto e branco, de três homens brancos e gordos em uma sala e três pessoas cadavéricas atrás de uma porta gradeada. À esquerda há um homem gordo com um nariz enorme. Ele está de perfil à esquerda, usa chapéu preto, camisa escura de mangas compridas e gola, calça clara e sapatos sociais escuros. Está com a mão direita sobre o chapéu e com a mão esquerda segura uma maleta escura. À direita, há dois homens gordos, frente-a-frente. O da esquerda é careca, usa sobretudo preto com bolsos, calça clara e sapatos sociais. O da direita tem cabelos curtos, nariz enorme e fino e quatro braços. As três mãos direitas estão à frente do corpo com as palmas abertas, como se ele fosse cumprimentar o outro homem e o braço esquerdo está junto ao corpo. Ele usa uma camisa escura de mangas compridas e gola, calça clara e sapatos sociais. Ao fundo, entre o homem da esquerda e os dois à direita, há uma parede branca e uma porta cinza gradeada. Por trás da porta, três figuras humanas em pé, de braços dados e de perfil para a direita. Elas têm os rostos de esqueleto e usam mantas cinzas claras compridas. Uma delas tem uma bengala. O piso da sala é de tábuas cinzas.

Texto expositivo: O gesto do artista é duplo e corrosivo: por um lado, expõe o esvaziamento ético das instituições religiosas, revelando o quanto a espiritualidade pode ser pervertida por interesses mundanos; por outro, devolve ao espectador a experiência concreta de perceber a fé como algo que se transaciona, como moeda de troca. Assim, entre moedas, cédulas e até símbolos banais da sociedade de consumo, ergue-se uma narrativa perturbadora: a da mercantilização da crença, mas também a da tensão insolúvel entre ritual e negócio, entre devoção e poder.

Entre a espiritualidade e a política, a religiosidade de Valle não se isola em templos ou se acomoda em dogmas; se lança ao mundo em duplo movimento: ético e estético. A insistência é no humano em tempos de desumanização. Há em sua obra uma liturgia própria: feita de repetição, cansaço, devoção e liberdade. Liturgia que se oferece não como promessa de salvação - mas exercício de memória, humanidade e resistência.












Bandido bom é bandido exposto Capítulo 3


Texto expositivo: A corda no pescoço seria desnecessária. Mais um adorno de intimidação, um elogio têxtil à tortura, que propriamente um instrumento para evitar qualquer tentativa de fuga. Francisco caminhava pelas ruas da pequena cidade de Pilar, hoje um município integrado à Região Metropolitana de Maceió, Alagoas, preso por uma corrente e cercado por carrascos. Na verdade, homens também escravizados que tiveram suas próprias penas de morte comutadas pelo serviço involuntário de executar seus pares. Condenado com base na lei imperial de 1835, inflexão legal determinante do óbito aos cativos que ferissem ou matassem seus proprietários, familiares ou atentassem severamente contra a ordem geral das coisas, Francisco seria enforcado em 28 de abril de 1876.
Depois de um processo judicial arrastado por quase dois anos sem direito a recursos, era o último homem, oficialmente, condenado à morte no Brasil.
Francisco foi sentenciado pela acusação de matar o Capitão da Guarda Nacional - João Evangelista de Souza havia sido atacado quando se encontrava desprevenido no Hotel Central de Pilar e, antes que tomasse consciência de sua condição de viúva recente, a esposa seria também morta, horas em seguida, no sítio onde o casal vivera na zona rural do município. O próprio imperador negou os recursos pela comutação da pena: Dom Pedro II não apenas determinou a execução sumária de Francisco, como indicou que a sentença se desse da maneira pedagogicamente espetacular prevista para as penas capitais.
A cidadezinha de mais de 13 mil habitantes não vira antes aglomeração tão grande: cerca de duas mil pessoas aguardavam diante dos mastros onde a forca esperava o réu. Na plateia, senhores de engenhos e escravocratas urbanos levaram seus cativos, ordenados, para assistir a Francisco ter sua laringe bloqueada e esmigalhada no golpe em que, pescoço quebrado, seu corpo ficaria flutuante por uma corda.

Imagem de obra: Escravo Francisco. 2021. Grafite sobre papel, 26 por 16 centímetros. Audiodescrição: Um homem negro suspenso pelo pescoço em uma forca diante de uma plateia. Ele está de costas, com o rosto de perfil para a direita. Tem cabelos curtos e pretos, usa camisa e bermuda brancas, as mãos estão amarradas às costas e os pés pendurados acima do chão. A forca é uma estrutura de madeira formada por três pilares verticais e traves horizontais. Na plateia, que está mais ao fundo, há dezenas de pessoas. A maioria dos homens usa chapéu e terno, e as mulheres vestidos.

Texto expositivo: Para a nem tão pequena audiência, era um espetáculo. Às avessas, mas um espetáculo. Conduzindo o cortejo, membros da Guarda Nacional em marcha coreografada. De cada lado da comitiva, um padre em bênçãos. Com calculada afetação teatral, um juiz lia e relia a sentença para o réu e o público.
O caráter espetacular seria tão importante quanto a aplicação jurídica da pena em si: uma forma didática e exemplar de informar aos brasileiros de ascendência africana e a seus descendentes, aos negros capturados diretamente em África ou aos brancos livres e pobres, o que lhes aconteceria caso, como ocorrera na república caribenha do Haiti, a população afrodescendente decidisse eliminar na foice a elite agrária, branca e escravista. Na Bahia, em São Paulo ou Minas Gerais, escravizados haviam atacado senhores, informando não mais aceitar jornadas excessivas, castigos cruéis ou a separação de seus familiares ao serem vendidos para outros proprietários.
No ano de 1833, em São Thomé das Letras, Sul de Minas, africanos e afrodescendentes haviam promovido um levante de justiçamento contra famílias de latifundiários escravocratas da região. Fresca pelas décadas seguintes na memória da elite agrária e política, a chamada Revolta de Carrancas seria usada como justificativa para a implementação da pena capital – embora o dispositivo e as disposições sobre a vida alheia e negra, como consequências mais evidentes das torturas sistemáticas impostas à população escravizada, fossem já uma realidade mais que prática.
Com o fim oficial da escravidão em 1888, a lei de pena de morte seria também oficialmente revogada no Brasil – confirmando o caráter racial de sua natureza (embora houvesse a previsão da pena capital para pessoas livres, condenadas por homicídio e de quaisquer cores, não consta que brancos tenham sido efetiva e legalmente executados no Brasil imperial). Com o fim da lei, o Brasil jamais perderia, contudo, seu pendor pelas execuções – apesar da sua religiosidade cristã e expressamente contrária a qualquer direito de alguém decidir sobre o fim da vida de outrem. O Brasil morre e mata. Muito e com frequência.
No ano de 2022, o artista Renato Valle investe-se de um expediente mais classicamente associado ao jornalismo ou à historiografia. Realiza uma série de desenhos – técnicas e dimensões variadas, do grafite, lápis de cor, tinta PVA, pastel, óleo, bico de pena sobre papel, do nanquim aos sulcos obtidos com a velha agulha materna de crochê, a partir da análise minuciosa de casos exemplares de penas de morte autorizadas, sempre pelo Estado ou ordenadas pelo poder constituído. Como faturas das obras, cores sóbrias, sombrias, um figurativismo precioso em serviço das especificidades dos personagens em seus episódios de morte. Execuções legais, realizadas em países e tempos diversos. Determinadas por Estados legais, algumas com o acréscimo das justificativas religiosas. Mais de um século depois de sua solvência oficial no Brasil, a pena de morte é objeto na poética do artista.

Imagem de obra: A anônima da Mongólia, 2021. Bico de pena sobre papel, 16,5 por 20 centímetros. Audiodescrição: Uma mulher com a cabeça e um braço para fora de um buraco, de uma grande caixa horizontal de madeira, com cantoneiras de ferro nas quinas, cadeado na parte da frente e correntes grossas na lateral direita. A mulher tem pele clara, cabelos lisos e pretos e está ao centro da caixa, virada para a esquerda e o braço esquerdo próximo ao cadeado, que está um pouco mais acima. No chão, em frente ao caixote, há pequenos pratos, xícaras e outros utensílios.

Imagem de obra: Brandon Bernard, 2021. Tinta PVA sobre papel, 19 por 28 centímetros. Audiodescrição: Um homem negro, preso por cintos afivelados marrons a uma maca preta, sobre a bandeira dos Estados Unidos da América. Ela tem listras vermelhas e brancas na horizontal e, na parte superior, à direita, há um retângulo menor azul escuro com estrelas brancas. O homem tem cabelos raspados, olhos pretos, nariz largo, boca grossa e veste um macacão aberto no peito e meias também laranjas. Ele está ao centro da imagem, de braços abertos, olha para cima, sério. Há um eletrodo de fio azul no braço esquerdo, outro no direito e dois fios amarelos no peito – todos ligados às estrelas da bandeira.

Texto expositivo: Curioso notar a dinâmica: em vez de desenhos para paredes ou galerias posteriormente agrupados numa publicação, uma série de obras, desde a concepção, pensadas para serem publicadas e reunidas, em formato de revista. Um formato híbrido entre a crônica jornalística e a arte. Poética reforçada pelo agrupamento serial, um conjunto de desenhos sobre execuções ideais, prototípicas - de fato exemplares. Mesmo quando não realizadas diante de plateia, mortes legais - e espetaculares - pela capacidade de mobilização da atenção e do debate públicos. O nome da série/revista: Bandido bom é bandido morto. Uma ampla alegoria do desejo atemporal, independente dos mecanismos formais da lei, de povos distintos pelas execuções de pessoas tidas como marginais - subpessoas, portanto. Em todas elas, ressalta-se o viés de espetáculo às avessas. Mortes exemplares em momentos que podem ser considerados, em maior ou menor grau, vetores da história.

Imagem de capa: Bandido bom é bandido morto, 2021 – 2022. Revista ilustrada. 58 páginas: 28 por 21 centímetros. Audiodescrição: Mosaico irregular, composto por colagens de recortes das obras de Renato Valle. Os recortes verticais e horizontais estão sobrepostos; a maioria é colorida e alguns preto e branco. Centralizado no topo, em letras brancas e maiúsculas: “BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO”, em duas linhas. Da esquerda para a direita, os recortes do rosto de um homem negro de olhos fechados, dois pés algemados, um olho, um fuzil virado para a esquerda e pés amarrados sangrando. Abaixo, um braço amarrado por cordas em um pedaço de madeira, um homem de olhos vendados preso pelo pescoço e uma mão próxima a um cadeado. Mais abaixo, o olho de um homem negro, um homem negro enforcado e outro crucificado. Depois, uma mão escreve à pena, outra mão sangrando, uma algemada, mãos amarradas por corda, e por fim, um homem com uma espingarda em punho, uma mão com prego na palma, com sangue escorrendo, e o texto branco “CTS”.

Texto expositivo: Um dos executados na série é o jovem americano George Junius Stinney retratado por Valle num díptico de vermelho ao fundo das duas partes. Uma em que o jovem aparece já executado, o rosto inerte, inchado para além do capacete e da máscara de silenciamento, usados durante a eletrocussão. Na outra, George figura ainda vivo, expressão serena, porém atenta, em camisa azul de gola branca. Com o vermelho da parede de fundo, um tríduo cromático alusivo às cores da bandeira norte-americana. A metáfora das cores é clara sobre o dispositivo estatal acionado para aquela morte.
Reforçando o expediente jornalístico, o próprio artista tece comentários informativos a partir de cada obra na revista de arte.

Sobre George, Renato Valle fala: “No dia 16 de junho de 1944, aos 14 anos de idade, George Junius Stinney, caminhou até a cadeira elétrica segurando sua inseparável Bíblia. Jurou inocência até o último momento de sua existência, no Estado da Carolina do Sul – EUA, onde nasceu. O adolescente negro foi acusado de assassinar duas garotas brancas com uma barra de ferro que pesava cerca de 10 kg, cerca de ¼ de seu peso. A suspeita veio do fato de ele ter sido visto com sua irmã, em frente à casa onde morava, prestando informações às duas meninas que passavam de bicicleta, procurando flores. Todas as circunstâncias do episódio deveriam inocentá-lo, mas em um ambiente segregado, interrogado por policiais brancos, em uma sala trancada e sem testemunha, posteriormente defendido por um advogado indicado pelo Estado, o qual não contestou as acusações nem convocou as testemunhas, o jovem foi condenado à pena de morte. Houve relatos de que o carrasco teve que colocar um suporte, um livro ou lista telefônica na cadeira, pois era um jovem com pouco mais de um metro e quarenta e pesava pouco mais de 40 kg; foram três longas descargas elétricas, e sua máscara caiu algumas vezes, revelando dor, choro e salivação. Em 2014, 70 anos após a sua morte, o caso foi revisto e a sentença anulada”.

Imagem de obra: George Junius Stinney, 2021. Díptico - tinta PVA, nanquim e lápis de cor sobre papel, 25,5 por 41,5 centímetros. Audiodescrição: Sobre um fundo vermelho, há duas imagens coloridas de George Junius Stinney, um jovem negro, visto do peito para cima. À esquerda, ele está de olhos fechados com um capacete para execução em cadeira elétrica: acobreado, em formato de funil, de cabeça para baixo, tem uma mordaça e uma cinta de couro no pescoço que se ligam ao capacete. Ele tem nariz largo, está levemente de perfil para a esquerda e usa camisa laranja. Na imagem à direita, ele tem cabelos pretos e curtos, olhos castanhos escuros, olheiras, nariz largo, boca grossa e veste camisa azul com gola branca. Ele olha para a frente, sério, com a cabeça levemente inclinada para a esquerda.

Texto expositivo: A série nasce da necessidade do artista em manifestar verbal e explicitamente um conjunto de opiniões, algo raro em sua trajetória, cujos argumentos ficam quase sempre latentes no ordenamento imagético das obras. Bandido bom é bandido morto, a série é um raro momento em que o artista ilustra suas obras com palavras. Vez por outra, Renato havia sido enfático, seja em formato de vídeos em postagens nas redes sociais, em textos publicados em artigos de jornais. Mas verbalizar opiniões em sintonia com séries de obras acontece mais raramente.
A estratégia para circulação das obras merece também atenção. Em vez de apenas esperar o público de uma galeria ou museu, o artista assume maior agência, enviando metade da tiragem de dois mil exemplares pelos Correios, para alcançar também tanto lideranças políticas como religiosas, além de jornalistas e formadores de opinião. O próprio Valle também listou alguns dos mais conservadores, pessoas sabidamente favoráveis às execuções, para receberem preferencialmente exemplares da revista.
A série está repleta de mortes exemplares. Motivo de um díptico em agulha de crochê, grafite e bico de pena sobre papel, há também, noutro exemplo, o desenho sobre a enfermeira inglesa Edith Cavell. Numa das páginas, Edith aparece quase de perfil, enquadrada a partir do busto. O brocado da blusa, a gravata e o coque arrumado sobre os cabelos penteados com zelo denotam elegância e firmeza de caráter. Na outra, um fuzil e um capacete alemão da Primeira Guerra Mundial estão suspensos no ar, sobre uma caveira sugerida ao fundo do desenho em grafite. Simbolizam seus carrascos e execução.

Imagem de obra: Edith Cavell, 2021. Díptico - agulha de crochê, grafite e bico de pena sobre papel, 26 por 42 centímetros. Audiodescrição: Há duas imagens em preto e branco. À esquerda, Edith Cavell de perfil para a esquerda. Ela é branca, tem traços finos, sobrancelhas medianas, nariz e boca pequenos. Está com os cabelos presos em coque alto, usa uma camisa de gola estampada com desenhos espirais e uma gravata escura com listras claras na horizontal. O fundo é cinza. À direita, há o desenho de um crânio de perfil para a esquerda. À frente dele, há um capacete militar preto com uma ponta metálica no topo, com um brasão mais claro na parte da frente e uma pequena aba. E abaixo, de uma margem a outra, um fuzil de madeira e aço, na horizontal, virado para a esquerda, na altura da boca do crânio.

Texto expositivo: Reconhecida publicamente como enfermeira na Inglaterra, Edith foi promovida a educadora e gerente no Hospital Escola da Bélgica, sob controle da Cruz Vermelha. Além de salvar vidas durante a Primeira Guerra Mundial, ajudou belgas, ingleses e britânicos a deixarem o país, então ocupado pelas tropas alemãs. Apesar da grande campanha internacional em sua clemência, Edith Cavell foi executada a tiros. Morta em Bruxelas, no dia 12 de outubro de 1915. A prova alegada para sua condenação: um bilhete de agradecimento enviado por um dos refugiados.
Na série, aparece também a judia de origem alemã Olga Gutmann Benário Prestes. Deportada aos sete meses de gravidez pelo governo de Getúlio Vargas para a Alemanha nazista onde, após dar à luz a filha Anita Leocádia Prestes num campo de concentração, a comunista é asfixiada numa câmara de gás no ano de 1942. Olga torna-se a executada política mais conhecida da história política do Brasil no século 20. “Difícil alguém normal achar que tudo isso foi normal”, comenta o artista, na página da revista relativa à obra. Àquele momento histórico, percebe Valle, gestos de salvação humanística estiveram além das religiões declaradas - e muitas vezes, em desencontro com as crenças estabelecidas.

Imagem de obra: Olga Benário Prestes, 2021. Tríptico - grafite sobre papel, 18,5 por 40 centímetros. Audiodescrição: Três desenhos em grafite juntos. O primeiro, à esquerda, é Olga Benário, uma mulher branca, com cerca de quarenta anos, de cabelos curtos, pretos e ondulados, sobrancelhas finas, nariz achatado e boca pequena. Ela está séria, levemente perfilada para a direita. Usa um casaco escuro com gola. Ao lado, duas imagens menores, uma acima da outra. Na de cima, atrás de dezenas de arames farpados, Olga está careca e de boca aberta, de perfil para a direita. À direita, duas mãos com luvas escuras seguram Anitta, filha de Olga, um bebê branco, recém-nascido, com o cordão umbilical pendurado. Na imagem abaixo, há um ambiente escuro, uma câmara de gás, com paredes compridas e sujas, ao fundo, uma porta escura.

Renato Valle fala: “Lembro que, em ‘A Arte da Vida’, Zygmunt Baumann conta que foi feita uma pesquisa na Polônia pós-guerra, sobre as pessoas que abrigaram e protegeram judeus em suas casas, pondo em risco suas vidas e a dos seus familiares e as que não abrigaram nem protegeram judeus, evitando os riscos. O perfil de ambos os grupos é o mesmo: nem um nem outro pertenciam a um determinado segmento religioso. Podiam ser católicos, protestantes, ou sem religião. Os que acolheram e salvaram, fizeram pelo simples fato de que não conseguiriam viver sabendo que poderiam ter salvado vidas e não o fizeram; os que não fizeram justificaram o não envolvimento com a própria proteção e a dos seus familiares”.

Texto expositivo: O conjunto de figuras é vasto. De personagens mais anônimos a mais célebres. Aparecem também uma versão de Tiradentes esquartejado; de Zumbi dos Palmares com a cabeça flutuando sobre uma representação da Basílica e Convento de Nossa Senhora do Carmo, no Centro do Recife; e do próprio escravo Francisco – retratado por trás, enforcado diante de uma aglomeração de poucos senhores e muitos escravizados, na cidade alagoana de Pilar, sob a celebridade de ter sido o último executado pela antiga lei marcial do Brasil imperial.

Imagem de obra: Zumbi dos Palmares, 2021. Grafite, tinta PVA, nanquim e lápis de cor sobre papel, 21 por 21 centímetros. Audiodescrição: Uma cabeça enorme de um homem negro sobre um pedestal branco. De olhos fechados, ele tem cabelos curtos, crespos e um pouco grisalhos, testa larga com algumas rugas, nariz largo e boca grossa e escura. Há sangue entre o corte do pescoço e a base do pedestal. Ao fundo, há uma igreja católica barroca, de fachada branca, com uma torre alta, um sino à esquerda e nove janelas retangulares de madeira verde. No alto, o céu azul está com poucas nuvens.

Texto expositivo: Pela popularidade da cena, um dos pontos de destaque na série é a mais comentada execução da história ocidental. Em bico de pena e grafite, ao lado dos dois “ladrões” que lhe acompanharam na ação sumária, está um Jesus Cristo na cruz. O nome da obra: Os três condenados (2021). No desenho, Cristo é delineado diferentemente da representação mais clássica da crucificação pela literatura católica.

Imagem de obra: Os três condenados, 2021. Tinta PVA, nanquim e bico de pena sobre papel, 18,5 por 23 centímetros. Audiodescrição: Imagem da crucificação de Jesus e outros dois homens. À esquerda, há um homem de pele clara, cabelos e barba pretos, com o rosto levemente virado para baixo. Ele usa um pedaço de tecido de tom rosa na cintura. No centro, mais atrás, Jesus está despido, tem pele clara e barba e usa uma coroa avermelhada sobre a cabeça. Ele está com o rosto inclinado para baixo e as pernas dobradas para a direita.
Há sangue escorrido abaixo do peito direito. Na parte superior da cruz, há uma placa escrito “INRI”. À direita, o terceiro homem tem pele clara, cabelos e barba pretos, e está com a cabeça levemente virada para a esquerda e usa um tecido de tom rosa na cintura. Os homens estão com os braços abertos, amarrados por cordas na madeira horizontal da cruz, e os pés unidos e amarrados na parte inferior. As mãos e pés estão pregados e sangrando. Ao fundo, o céu é escuro e o chão é marrom e rachado.

Renato Valle fala: “As representações cristãs da crucificação comumente colocam o Cristo em cruz polida, limpa, com um apoio cuidadosamente colocado para os pés, como se, para pregá-los, não precisassem quebrar os seus ossos. Uma representação assim conduz muita gente a uma aceitação brutal dessa condenação, enquanto, diante de um dos métodos mais cruéis de tortura e morte, deveríamos sentir repulsa e indignação. Essa reflexão me fez representá-lo em uma cruz tosca e colocá-lo abaixo dos outros dois condenados, uma vez que, sendo Ele considerado um ‘bandido mais perigoso’, certamente foi mais humilhado e torturado”.

Texto expositivo: A representação de Cristo elege, de forma um pouco mais cristalina que as demais, a contradição essencial que move Valle na série Bandido bom é bandido morto. Para o artista, está patente a incongruência civilizatória no fato de que a esmagadora maioria da população brasileira se alegar francamente adepta do Cristianismo, esteado no amor ao próximo e no mandamento “Não matarás teu semelhante” e, igualmente, sem paradoxo percebido, declarar-se a favor da pena de morte. Uma anomia flagrante.
Durante as pesquisas para sua revista, Renato Valle depara-se com os resultados de uma pesquisa, de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A investigação informava que 60% da população brasileira acredita, de pestanas tranquilas, na premissa de que “bandido bom é bandido morto”. Mais da metade dos brasileiros, portanto, é favorável à pena de morte. Acredita, portanto, que bandido bom não é apenas bandidomorto,mas bandido executado.Eis a população de um país forçosamente católico desde seu berçário, tendo a Igreja Católica Apostólica Romana como respaldo ideológico. Não apenas respaldo, mas beneficiária direta: quando os religiosos emanciparam seus escravizados, em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil pessoas subjugadas neste País em que as Irmandades dos Homens Pretos construíram e/ou doaram muitas igrejas e edifícios e propriedades ao Vaticano.
De matriz católica, em 1970, os chamados crentes representavam ínfimos 5% da população. No censo de 2010, eram já 22%. Publicado em 2025, o Censo 2022 revelava que o catolicismo continua sendo a religião majoritária no Brasil, embora com uma redução em sua participação, enquanto os evangélicos e pessoas sem religião aumentaram suas porcentagens. Especificamente, os católicos diminuíram sua representatividade para 56,7% da população, enquanto os evangélicos alcançaram 26,9%, e os sem religião chegaram a 9,3%. Um país que vai, assim, mudando os tons do seu Cristianismo.
Alguns motivos mais evidentes são apontados por uma sociologia das religiões no Brasil para o fenômeno. A crescente presença de grupos e igrejas neopentecostais no comando de empresas de mídia e comunicação, a incapacidade da igreja católica de estar presente em periferias mais recentes e a desburocratização do acesso à fé protestante, por exemplo. Por desburocratização, entenda-se que para se tornar evangélico basta levantar o braço e proclamar a aceitação da fé protestante, não sendo necessário cumprir rituais que vão do catecismo mais demorado ao batismo. Ou, do ponto de vista organizacional, a dispensa de uma autorização, muitas vezes morosa, de uma instituição central como o Vaticano para que uma igreja seja aberta.
Neopentecostais podem, a qualquer gesto, converter mínimas garagens ou lojinhas em templos. De maneira autônoma. Em diálogo direto com um Deus que, se na teoria litúrgica prega o amor e ao respeito à vida, não impede, na prática, as políticas do justiçamento cotidiano. A fé não encontra contradição racional com a morte.

Imagem de obra: Frei Caneca, 2021. Grafite e lápis de cor, 19,5 por 28 centímetros. Audiodescrição: Frei Caneca amarrado e três pessoas encapuzadas ao lado. À esquerda, as três pessoas com mantos pretos e longos estão lado a lado, de cabeça baixa, com apenas parte dos rostos à mostra. À direita, Frei Caneca está amarrado a um poste de madeira com cordas pela cintura. Ele usa uma túnica marrom, está perfilado para a esquerda, tem a pele clara e cabelos ondulados e castanhos. Olha na direção dos encapuzados e segura um livro branco. Por trás dele, há um rosto semelhante, de olhos fechados e cabeça abaixada. Mais ao fundo, há uma construção cinza de fachada alta, com detalhes amarelos, janela vermelha e porta central em formato de arco. Em frente à fachada, um soldado de farda azul e cinza segura uma espingarda apoiada no chão. No alto, o céu está preto.

Texto expositivo: O que motiva o artista, portanto, não é a mera constatação de que aparatos legais estatais tenham tido ou ainda tenham o poder decisório sobre o fim da vida a partir de julgamentos, no mais das vezes, proferidos pelo Estado por interesses de classe. Mas a contradição umbilical de que, com a conversão gradual do catolicismo barroco-tropical em neopentecostalismo periférico, o brasileiro se confessa mais ardentemente cristão. Mais bíblico, mais eticamente religioso nas ações ordinárias, mais íntimo da palavra divina e, ainda assim, mais entusiasta da crença de que bandido bom é bandido morto.
Maior nação cristã do mundo, o Brasil, aponta o artista, é a conciliação de éticas opostas. O país da popularização da fé onde emergem, por exemplo, fenômenos como o “narcopentecostalismo” – na mão inversa dos que abandonam o tráfico pelo mecanismo da conversão, comunidades de traficantes autodeclarados neopentecostais. Marginais com Bíblia em mãos como argumento estratégico para ações e domínios de territórios. Para os quais quem infringe as regras de mutualidade e convivência deve ser também executado.
Para os que se enquadram na categoria da infração das normas devem ser submetidos à lógica dobandido bom é bandido morto. Uma bíblia na mão, um fuzil na outra.

Renato Valle fala: “Dos aproximadamente oito bilhões de habitantesdo nosso planeta, cerca de 1/3 declara pertencer a alguma vertente do Cristianismo. Em termos percentuais, o Brasil é a maior ‘nação-cristã’ do planeta; e os Estados Unidos a segunda. Além das mais antigas e tradicionais religiões, o terreno aqui no Brasil tem sido fértil para o surgimento de muitos grupos religiosos com base nas chamadas ‘escrituras sagradas do Cristianismo’. O interesse pelo poder temporal, sempre presente em muitas instituições religiosas, costuma distorcer os fundamentos essenciais de qualquer doutrina, seja ela política ou religiosa, abrindo, assim, as portas para abusos, crimes e guerras. No Campo individual, o que percebemos é que participar de um grupo religioso, de seus cultos, rituais etc. não confere a quem quer que seja a qualidade de cristão. Ser e aparentar podem ser coisas bem distintas. Dessa forma, não é incomum que se busque integrar um grupo visando, sobretudo, o verniz de um status qualquer”.

Texto expositivo: O artista se debruça sobre um país em franca florescência evangélica. Entre os anos de 2010 e 2017, percebe ele, foram registradas quase setenta mil entidades declaradas como organizações de cunho filosófico ou religioso na Receita Federal. Algo em torno de 25 novas organizações por dia.

Renato Valle fala: “Muitas pessoas buscam pertencer a um determinado grupo não para mobilizar forças e empreender uma ‘renovação interior’, mas para ‘fundamentar’ o que tem de pior dentro de si, através de teorias que os convém, e, no caso das religiões, procuram interpretações e reinterpretações das ‘escrituras sagradas’ de maneira que ‘caibam’ nessasjustificativas”.

Texto expositivo: Em sociedades marcadas pela escravidão – caso do Brasil desde logo depois de seu mais tenro batismo – não apenas a desigualdade torna-se estruturante da manutenção histórica de privilégios, como a morte precoce é usada para a destinação tácita de parte massiva da população, uma grande maioria minorizada condenada, antes do suspiro final, a um já perene rito gradual de morte em vida. No mundo inteiro, calcula-se, cerca de 2/3 de todos os habitantes do planeta terra são “descartáveis” - ou seja, pessoas à margem dos sistemas de produção, desimportantes e excluídas tanto como força de trabalho, como agentes de consumo. Servem apenas, no horizonte do capitalismo global do século 21, para tornar ainda mais barata a mão de obra que consegue se integrar por meio de funções precarizadas. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, cerca de 40% da população está abaixo dos níveis minimamente dignos da pirâmide social brasileira.

Imagem de obra: A escrava Rosa, 2021. Grafite sobre papel. Díptico: 26 por 36 centímetros. Audiodescrição: Há duas imagens de uma mulher negra. À esquerda, uma mulher enforcada, suspensa pelo pescoço em uma forca de madeira à esquerda, ela ao lado direito e abaixo dela um pequeno tamborete virado. Ela é careca, de perfil para a direita, usa bata longa e branca e está com os pés pendurados longe do chão. Ao fundo, há um casarão de fachada branca com janelas simétricas em arco e árvores frondosas por trás. No alto, o céu está com nuvens. À direita, a outra imagem é da mulher vista da altura do peito, perfilada para a esquerda. Ela tem cabelos crespos, pretos e volumosos, presos em um rabo de cavalo, testa protuberante, sobrancelha fina, olho pequeno, nariz longo e boca grossa. Usa uma argola grande e fina na orelha e camisa branca. O fundo é branco.

Renato Valle fala: “Acredito que boa parte da população sente um forte desejo de explorar o pobre, se esforça para que políticas de inclusão não sejam implementadas. Afinal, para quê dar acesso a uma universidade aos filhos dos que lhes servem? Esses devem permanecer na pobreza para que seus filhos, netos, bisnetos etc. tenham quem lhes sirva! Essa é uma das razões que justificam pregações como ‘Universidade é para poucos’, e, na sequência, o esforço para privatizar as universidades públicas. Já em relação aos miseráveis, estes, para essa gente, não devem ser ‘assistidos’, mas sim, eliminados. Arrancam seus cobertores nas ruas, colocam barreiras para dificultar que se abriguem em locais públicos, calçadas com marquises, por exemplo. Independentemente da cor, pobre deve ser explorado e miserável, eliminado. Arrumam presépios dentro de suas casas, mas fora delas querem varrer gente como se fosse lixo. Imaginem Jesus Cristo com seus pais nos dias de hoje, um casal pobre que teve de fazer um parto em uma manjedoura! Qual seria o destino dessa família se dependesse desses falsos cristãos?”

Texto expositivo: Os mártires executados da obra de Renato Valle, silenciosamente, corporificam também os rostos anônimos, subpessoalidades, que, sem que se precise gastar uma bala contra eles, acabarão também por serem assassinados por mecanismos discricionários e silenciosos do Estado, em comunhão com uma elite social e financeira interessada em concentrar, desde sempre, as prioridades de uso do orçamento público. Entre os executados da sérieBandido bom é bandido morto, há em comum o fato de desrespeitarem os habitusde seus tempos.
Conceito sumarizado pela sociologia do francês Pierre Bourdieu, a ideia dehabitus sintetiza o conjunto de disposições prévias para a vida social, esquemas nem sempre conscientes de pensamento, sensibilidade, percepção e ação, apreendidos ao longo das interações e determinantes de escolhas e comportamentos individuais diante da sociedade. Habitus, portanto, é um mecanismo ordenador e disciplinar.

Imagem de obra: Mata-Hari, 2021. Agulha de crochê, grafite e nanquim sobre papel, 28,5 por 18,5 centímetros. Audiodescrição: Imagem vertical em preto e branco. Ao centro, há uma grande figura feminina desenhada por contornos brancos. Ela usa adornos com ornamentos em espiral nas laterais da cabeça, um vestido longo e plissado com aplicações nas alças e no busto, colar, bracelete e pulseiras. Olha para baixo, levanta a barra do vestido com a mão esquerda e coloca a mão direita à frente do corpo, sobre um grupo de pessoas aglomeradas, de chapéus e roupas pretas, no centro inferior da imagem. No canto esquerdo, na penumbra, há uma mulher, em pé, de perfil para a direita.
No canto direito, há um grupo de homens de preto que apontam espingardas para ela. O fundo é cinza.

Texto expositivo: Por extensão, essa linha da dignidade pode também distinguir os plenamente humanos dos sub-humanos. Os que não estão integrados ou aptos a internalizar o corpus disciplinador, desenvolvendo, assim, habilidades subjetivas como a capacidade de planejamento, autocontrole e submissão ao ordenamento legal, estarão marginalizados. Olga Benário Prestes e Jesus Cristo ousaram discordar das hegemonias de seus tempos. Tanto pelos assassinatos que cometeu, mas sobretudo por ameaçar a ordem escravista vigente, posto que alguns de seus companheiros não tiveram a forca como destino, o Francisco escravizado e executado na cidade alagoana de Pilar também, mais que homicídios, promoveu a desestabilização dos ordenamentos. Tanto quanto o jovem americano negro: eletrocutado aos 14 anos de idade sob a acusação de um duplo homicídio, pelo qual seria inocentado mais de 70 anos depois, o adolescente George Junius Stinney não teve direito sequer a defesa plena. Em 1944, o fato singelo de ser negro o tornava um corpo alijado dos mecanismos sociais e noções civilizatórias alimentadas pelo habituscomo dispositivo de ações em seu tempo.
As imagens de Renato Valle parecem subscrever as ideias de Foucault, para quem, desde o século 17, os Estados têm criado mecanismos silenciosos para distinguir, sem precisar recorrer ao cadafalso, os que devem viver dos que não devem viver. Que morram os corpos inúteis por falta de acesso às políticas mínimas de subsistência, estejam eles desintegrados aos sistemas econômicos, ou desobedientes às ideologias vigentes. A falta de acesso permanente às estruturas minimamente necessárias de serviços de saúde e de prevenção a doenças evitáveis (porém letais), de escolaridade que garanta colocação minimamente sustentável para si e seus familiares, de saneamento básico e de noções básicas de equilíbrio garantirão suas mortes precoces. O extermínio é tácito, vala comum, e menos custoso para o erário que disciplinar um sistema de execuções legais.
Mesmo as mortes violentas não precisam, necessariamente, ser diretamente operadas pelas estruturas do Estado. Mas tacitamente consentidas por omissão.
Números nos ajudam a raciocinar: O Atlas da Violência 2024, por exemplo, traz os dados de mortes por homicídio no País no ano de 2022. Pela compilação do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA), quarenta e seis mil, quatrocentas e nove pessoas foram assassinadas no Brasil naquele ano. E, como sempre, desde o tempo em que as execuções eram legalmente tipificadas no País, os alvos preferenciais estão baseados na cor da pele. Do total de mortos, 76,5% eram pessoas pretas e pardas. Em Pernambuco, estado do artista, das 117 pessoas mortas em abordagens policiais, 95,7% eram pardas ou negras.
Em dimensão ampliada, a obra de Renato Valle amplifica o volume do pensamento de autores como Charles Mills, um dos raros filósofos negros contemporâneos. Autor de O Contrato Racial (1997), o jamaicano dilui o consenso secular, ao discordar da tese geral de que a modernidade teria sido possível apenas pelo contratualismo através dos quais os indivíduos teriam aberto mão de suas liberdades mais privativas em favor de um conjunto restritivo de leis pelos bem e respeito mútuos.

Charles Mills fala: “O contrato peculiar a que estou me referindo, embora baseado na tradição de contrato social que tem sido central para a teoria política ocidental, não é um contrato entre todos (‘Nós, o povo’), mas apenas entre as pessoas que contam, as pessoas que realmente são pessoas (‘Nós, os brancos’). Portanto, é um contrato racial.

Texto expositivo: Na revisão de Mills, a modernidade é viabilizada historicamente por outro tipo de contrato. Por meio da anexação violenta de colônias e populações, um enorme contrato racial em que a humanidade seria dividida entre os que trotam e os que devem ser cavalgados, a partir da linha de cor da pele. Anexação de povos e territórios, monocultura de plantatione, estruturalmente, escravização de um terço da humanidade fundam esta modernidade.

Charles Mills fala: "O que é necessário, em outras palavras, é um reconhecimento de que o racismo (ou, como argumentarei, a supremacia branca global) é, em si, um sistema político, uma estrutura particular de poder para um governo formal ou informal, para o privilégio socioeconômico e para normas de distribuição diferenciada de riquezas materiais e oportunidades, benefícios e responsabilidades, direitos e deveres".

Texto expositivo: A branquitude, como subscreve a antropóloga brasileira - branca e paulistana - Lilian Schwarcz (2024), historicamente, tem atrelado narrativas de neutralidade a si para "racializar" os demais. Um mecanismo retórico de subalternização e distribuição de privilégios. O sistema global da arte tem contribuído para o estabelecimento de um contrato racial a partir da modernidade. Como nos diz a francesa Françoise Verger, referência mundial em estudos decoloniais, "O museu é, desde sempre, um roubo".

Lilian Schwarcz fala: “O museu é uma invenção europeia, uma das mais importantes daquele grande momento de acumulação de riquezas, da acumulação de capital que marca o início da modernidade. A ideia de uma civilização superior, baseada nas questões de raça e superioridade, na ideia de que a Europa deveria juntar todos os tesouros da humanidade, como se a Europa tivesse o papel ou o dever, como uma civilização que sabe o que é a arte e a própria civilização, nasce em paralelo com os museus" (Idem).

Texto expositivo: A arte, a etiqueta e o bom gosto são dispositivos historicamente usados pelas classes mais abastadas, o conjunto de camadas sociais chamado de burguesia, para se diferenciarem dos demais. Nos seus retratos de executados, Renato Valle desenha em mão oposta à da tradição da arte ocidental. Corpos precarizados que, tratados comumente como objetos, reivindicam, após suas mortes, a condição de sujeitos. No tumulto de seus silêncios, encontramos em Renato Valle, um artista arredio ao cansaço iminente.











Bananas, caramelo, ordem e progresso Capítulo 4


Texto expositivo: No Brasil, as praças do poder conhecem encenações diferentes do medo. Em 1964, a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade vestiu-se de moralidade e devoção para imprimir verniz cívico a um ato que pavimentou a ruptura democrática. Meio século depois, num 8 de janeiro já convertido em marco da memória nacional, não foram senhoras de luvas brancas e rosários nas mãos que ocuparam o espaço público, mas furiosos que, à sombra verde-amarela da bandeira, entregaram-se ao saque e à destruição dos símbolos concretos da República.
Se em 1964 o gesto parecia ordenado, quase litúrgico, em 2023 revelou-se caótico e brutal. Ambos, no entanto, partilharam a mesma vocação: vestir de civismo aquilo que, no fundo, era a negação da democracia. O Brasil, afinal, tem o dom de repetir, como desfiles, seus pesadelos. A coreografia mudou, mas o enredo permaneceu: travestir o assalto à democracia de ato patriótico – como se quebrar vidraças ou abrir caminho para tanques fosse apenas uma versão tropical da fé cívica. Camisas de futebol, uniformes canarinhos, capacetes de mototáxi e celulares eretos para a selfieda destruição, os elementos da marcha fúnebre da democracia.
Testemunha atenta dos dois momentos históricos, Renato Valle reage com uma série que se torna uma das mais contundentes interpretações da violência atávica na recente história republicana brasileira. O artista revela ter passado duas semanas deprimido após assistir aos eventos transmitidos ao vivo pelas telas do País até lograr a inquietação em obra.

Renato Valle fala: No nosso curto período republicano, golpes e tentativas são tão frequentes que parece que estamos vivendo um eterno desalojar de governo em andamento. Ora vinga o rompimento institucional, ora não”.

Texto expositivo: Neste episódio da república em convulsão, o artista percebe outra vez a genealogia do ódio:

Renato Valle fala: “Umberto Eco, certa vez, disse que ‘O amor é extremamente seletivo’. Se eu te amo, eu quero que você me ame de volta, eu não quero que você ame outra pessoa, e não quero que a outra pessoa te ame, e assim por diante. Então, isso restringe as relações humanas. Mas o ódio é generoso! É caloroso. Ele une todas as pessoas contra outras pessoas. Por isso, é usado por políticos frequentemente. Infelizmente, as redes sociais potencializam o ódio como instrumento político”.

Texto expositivo: A série brail (sic, grafada com o “b” minúsculo e o “s” invertido e maiúsculo) trata do autoritarismo no período republicano – em vários períodos – não apenas neste quarto mais recente de século 21, em que a República assiste de novo às tentativas de convulsionamento. Composta por doze obras de grandes dimensões, cada tema determina a técnica – desenhos, pinturas a óleo ou acrílica, objetos e uma impressão sobre canvas. Como é regra no ateliê do artista, não há escolha rígida sobre a técnica ou o suporte a serem adotados; antes, o tema impõe a escolha se lhe impõe.
O viés é mais filosófico do que histórico - embora a historicidade dos fatos se faça flagrante. Não há preocupação com cronologia; os episódios surgem das inquietações do artista, “quase sempre de forma intuitiva, para depois pensar com maior profundidade e estudar a melhor maneira de representá-los”. Mas é inegável que, no futuro próximo, alguns quadros poderão ser lidos como reflexos claros do teatro de sombras sobre a democracia brasileira.

Renato Valle fala: “Violência coletiva é uma espécie de arrastão. Alguém com carisma, espírito de liderança e uma boa estratégia consegue reunir pessoas com os mesmos desejos que, sozinhas, não saberiam como atingir seus objetivos. Muitos, até, não teriam coragem sem um forte estímulo. No campo político ou religioso, e no Brasil uma mistura perversa dos dois, o arrastão enfim acontece”.

Texto expositivo: A série evidencia como arte, religião e política se entrelaçam: gestos, símbolos e cores tornam-se instrumentos de reflexão sobre o poder e suas seduções; e a obra de Valle transforma o terror e a incredulidade em imagens que convidam o espectador a confrontar a história recente com olhos atentos, críticos. Algumas em irônicas e inusuais naturezas-mortas.
A natureza-morta, tradicionalmente, surge na história da arte como um meio de explorar a relação entre observação meticulosa e representação simbólica.
Objetos cotidianos – frutas, vasos, livros, utensílios – dispostos com cuidado para revelar texturas, cores, luzes e sombras, permitindo ao artista destilar domínio técnico e sensibilidade estética. Mais que exercício de virtuosismo, contudo, naturezas-mortas carregam mensagens sutis sobre efemeridade, riqueza, poder ou moralidade, reflexões silenciosas sobre vida e sociedade. Van Gogh (1853–1890) usou pinceladas vigorosas e cores intensas para fazer dos Vasos de Girassóis (1888) e da Cesta de Alimentos (1885) experiências emocionais, reflexos de tempestades cerebrais intensas. Paul Cézanne (1839–1906) estruturou objetos e maçãs geometricamente, antecedendo o Cubismo. Não eram apenas laboratórios de formas, mas possíveis exercícios sobre perspectivas existenciais.
Na série brail o nome da obra com esta técnica, irônica e literalmente, é Natureza Morta – um óleo com meticuloso trato da luz, em uma superfície de 1,90 por 2,5 metros. Técnica acima da média, volumetria que faz os objetos saltarem da superfície e planar para o real, os elementos tratados, como naturezas-mortas, evocam o passado-presente contínuo em que parte da sociedade brasileira sequestra símbolos caros e invertidos do nacionalismo para destilar sua cordial violência cotidiana.

Imagem de obra: Natureza Morta, 2024. Óleo sobre tela. 190 por 250 centímetros. Audiodescrição: Objetos e prateleiras pendurados em uma parede branca. Na parte superior, há um grande fuzil escuro que vai de uma margem a outra. Abaixo, à esquerda, sobre uma prateleira azul clara, há duas bandeiras do Brasil, uma do Brasil Império e a outra atual. Ao centro, uma pistola prateada e, ao lado direito, pendurada em um cabide por um parafuso, uma camisa amarela de malha com a frase, em verde: “Deus, Pátria, Família & Liberdade”. Abaixo, à esquerda, sobre uma prateleira azul, um soldadinho de chumbo aponta para uma bíblia roxa escura e letras douradas. À direita, sobre uma prateleira laranja, há dois bonecos: um com traje típico do Integralismo: camisa social de mangas compridas verde escura, gravata, calça e sapato social pretos; e ao lado, um jogador de futebol negro, de cabelos vermelhos, com o uniforme da seleção brasileira: camisa amarela, short azul, meiões brancos e chuteira preta. Ele levanta a mão direita com o punho fechado – que remete aos Panteras Negras – e, com a esquerda, faz o símbolo “WP” – “White Power”, gesto supremacista branco. O gesto é como um “ok”’, a ponta do dedo polegar se une a ponta do dedo indicador, formando um círculo e os outros três dedos ficam esticados.

Texto expositivo: Em disposição de suposta harmonia, os objetos se distribuem como num continuum sobre a parede. Sobre pequenas prateleiras, como totens, está a figura de um soldadinho de chumbo cuja arma aponta para uma Bíblia Sagrada. Um pouco mais acima, indicando a permanência da inconstância institucional, há miniaturas das bandeiras do Brasil no Império e na República.
Dois homens também em miniatura integram a cena. Um trajando roupas típicas do Integralismo, versão tupiniquim do fascismo civil do começo do século XX. O outro, como um jogador com a camisa da seleção nacional de futebol, um homem negro, cujo gesto ao avesso tensiona mais sua figura: com a mão, ele faz o White Power, símbolo supremacista branco. Mais acima, com cores pátrias, suspensa por um cabide, uma camisa com o slogan: “Deus, Pátria, Família & Liberdade”, lema do fascismo Italiano de Mussolini, adaptado do pensamento de Giuseppe Mazzinni, um dos pais da unificação italiana, adotado, desta vez, por parcela conservadora e radical brasileira. Um fuzil e uma pistola completam a composição. São desnecessárias maiores legendas. Os signos são evidentes.
A obra de Renato Valle não se filia a regionalismos ou manchetes efêmeras – embora, aí temos claro, tome partido de seus extratos e circunstâncias. Não atua naquilo que se propõe a ser visto como simetria acima da história. As narrativas deste artista se alimentam justamente das frestas dinâmicas da realidade. Por meio de sua religiosidade, o corpo quase sempre desarmônico da sociedade expõe suas perversas dimensões políticas. Como ele mesmo sublinha, estes são apenas os símbolos mais recentes de uma violência (des) estrutural.
Em seu itinerário, o artista revisita também obras hoje consideradas peças de referência da semiologia da colonialidade nacional – expediente recorrente em parte considerável da arte contemporânea brasileira, em reescrituras assinadas por nomes como Denilson Baniwa, Anna Bella Geiger, Jaime Lauriano, Dalton Paula, Tiago Sant’Ana ou Gê Viana. Peça de destaque na produção do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), durante sua estada no Brasil após se ver desempregado e falido diante da ruína do absolutismo francês, Um Jantar Brasileiro é considerado documento visual de primeira importância sobre a vida cotidiana do Brasil na puberdade de sua transição de colônia para império. A despeito de ser uma obra de arte – produto da observação e interpretação de um homem – trata-se de uma imagem elevada à condição de verdade pelo sistema pedagógico nacional, a partir da incorporação póstuma do álbumViagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, realizado por Debret em 1835. Uma espécie de janela para observar o Brasil como ele foi e compreender o que o levou a ser o que é.
Em sua paródia crítica, Renato Valle mantém os gestos que, como arquétipos, confirmam a estrutura social sintetizada nos personagens. No quadro de Debret, o menino à frente ergue-se de forma ao mesmo tempo infantil e submissa em direção às migalhas. Sobre ele, a dona da casa lança um olhar de terna perversidade. A criança performa o papel de animalzinho de estimação, distraindo os brancos entre o mastigar e o divagar sobre a vida modorrenta na nova sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Um detalhe se destaca: ao pescoço, uma espécie de gargantilha – objeto que, com o acobreado intensificado na pintura, reforça visualmente a condição imposta. Erguido dócil e diligente em direção às migalhas da senhora, há uma coleira, insinuando que a liberdade do pequeno é limitada, subordinada à vontade do dominante. A cena de inegável necropolítica não oculta a aniquilação de uns corpos sobre outros, mas, nos livros escolares, poderia ser lida como flagrante testemunho de harmonia nas relações raciais perversamente desiguais.

Imagem de obra: Persistência doentia, 2024. Óleo sobre tela. 180 por 250 centímetros. Audiodescrição: Uma atualização da obra “Um jantar brasileiro”, de Debret, de 1827. Na imagem, uma mulher e um homem brancos estão sentados à mesa, e três adultos e duas crianças negras ao redor. A mulher está na cabeceira da mesa, à esquerda, ela tem os cabelos presos com uma tiara dourada, usa um vestido amarelo com decote, tem seios fartos, usa um colar dourado e sapatos azuis. Sobre o ombro direito, há uma bandeira do Brasil. Com a mão direita, estende um garfo com um pedaço de comida para um menino negro, que está em pé, de perfil para a esquerda. Ele está nu, tem cabelo curto, barriga e bunda protuberantes, usa gargantilha e pulseiras cor de cobre e segura o alimento com as duas mãos. Ao lado direito, há outra criança nua, de cabelos curtos, sentada, com uma comida na boca. Atrás da mulher à mesa, à esquerda, está uma mulher negra, em pé, de perfil para a direita. Ela tem cabelos curtos, usa tiara, brinco, colares e vestido brancos e está descalça. Segura um afastador de moscas com cabo de madeira e fitas de panos claros na ponta. Na outra cabeceira, está o homem, ele tem cabelos escuros e costeleta, usa uma camisa da seleção brasileira: manga comprida amarela, com a gola e punhos das mangas verdes, calça azul e sapatos amarelos. Ele está com uma colher cheia, próxima à boca. Atrás dele, um homem negro, sério, de braços cruzados, olha para a mesa. Usa blusa vermelha com golas brancas e está descalço. Ao lado direito, na porta, há uma mulher negra, com o braço direito dobrado sobre o corpo, usa camisa bege e calça branca. A mesa está forrada com uma toalha branca. Sobre ela, além dos pratos do casal, há taças, uma travessa com um galeto, outra com três frutas amarelas, uma jarra e uma garrafa. As paredes são cinza-claro e o piso de madeira.

Texto expositivo: Na atualização de Valle, pouca coisa mudou desde os oitocentos: as elites nacionais continuam a usar conceitos abstratos de nação e civilização para manter concretos privilégios e perversidades. O artista comenta: “Não é uma releitura, é uma atualização”. A atualização percebe as ambiguidades capturadas por Debret: superioridade inata da branquitude, subalternização genocida dos corpos negros e, numa operação de embelezamento, a ausência de conflitos aparentes entre grupos diferentes. Um escravismo entendido, portanto, da harmonia, nos termos de Gilberto Freyre. Persistência doentia é o nome dado à sua releitura do clássico debretiano.

Renata Valle fala: “Creio que, entre colonizadores e colonizados, o Brasil é polarizado desde a ocupação portuguesa. Vários fatores, principalmente a importação do maior número de escravizados da história do planeta e a manutenção dessa prática pelo maior período de que se tem notícia, arraigaram culturalmente uma polarização entre opressores e oprimidos. Para além desses pólos, há também uma massa que agrega omissos e indiferentes”.

Texto expositivo: Durante a fase de projeto, episódios biográficos ajudam a atualizar significados, aumentando a porosidade entre arte e realidade.

Renato Valle fala: “A intensificação dessa série, no início de 2023, coincidiu com a mudança do meu atelier. Contratei um caminhão-baú com motorista e três ajudantes. No dia marcado, um apareceu. Passou por nós um catador de lixo numa bicicleta com material para reciclar. O motorista o chamou, ele aceitou e colocou a bicicleta no caminhão.
Perguntei se queria recolher algo para si e ele aproveitou, trazendo seus pertences para minha garagem. Perguntei se gostaria de outra profissão, e ele disse que sabia pintar, fazer faxina, mas era pai de quatro filhos e preferia ser catador. Fiquei intrigado e quis comparar atividades. Ele me contou que pintou um apartamento por R$ 120 e fez uma faxina em outro por R$ 60. meses depois, percebi que os personagens com a bandeira do Brasil e com roupas da seleção representavam, respectivamente, a mulher que explorou o rapaz na faxina e o homem que o explorou na pintura.
Muitas vezes começo por intuição e depois entendo o que está sendo feito. Usar uma obra do tempo do Império, colocando símbolos da República, não é uma releitura, mas uma atualização. Revela o comportamento escravista presente”.

Texto expositivo: Em vertigem rizomática, a série alterna credulidade, ironia, ceticismo e desesperança, mostrando que o Brasil é um projeto de sucesso – um bem-sucedido projeto de exclusão, capaz de produzir, em mão contrária, uma poética crítica espessa. As imagens vocativas compartilham implicações éticas e escolhas estéticas: linguagens e materiais determinados pelo tema. A pecha de “república de bananas” é comentada na obra A República:dois metros por dois metros, bananas reais mumificadas e tinta acrílica sobre bananas artificiais fixadas em MDF. Explicitamente agrupadas no formato do mapa do Brasil.

Imagem de obra: A República, 2020 a 2025. Objeto - bananas mumificadas e artificiais sobre MDF. 200 por 200 centímetros. Audiodescrição: Sobre fundo preto, há um grande mapa do Brasil, feito de bananas amarelas e verdes realistas.

Texto expositivo: A incompletude do projeto republicano é sugerida em Obra para restaurar (2024-2025): uma grande acrílica sobre tela, (1,95 x 3 m), na qual a frase “Ordem e Progresso” parece despencar do globo azul central da bandeira nacional. A submissão permanente ocorre emComplexo de Vira-lata: duas grandes bandeiras sobrepostas, uma brasileira, outra norte-americana, cujas linhas estruturam também o corpo de um cachorro de raça indefinida; a cabeça se confunde com o quadrante azul com estrelas representando os estados dos dois países: os EUA e o Brasil.

Imagem de obra: Obra para restaurar, 2024 a 2025. Acrílica sobre tela. 195 por 300 centímetros. Audiodescrição: Uma bandeira do Brasil com a faixa “Ordem e Progresso” recortada e pendurada à esquerda, pelo “O” de “Ordem”. A faixa é branca e as letras verdes. A bandeira é retangular e verde, ao centro tem um losango amarelo e, sobre ele, um círculo azul com a faixa. Há uma estrelinha branca acima da faixa, e vinte e seis abaixo, entre elas, está a constelação do Cruzeiro do Sul.

Renato Valle fala:“Voltei pro início da República e seus primeiros símbolos. A primeira bandeira republicana é uma imitação da bandeira norte-americana, estadunidense. Listras amarelas e verdes, e um retângulo no canto superior esquerdo, com as estrelas que representam os estados.
Pensei na frase ‘Complexo de vira-latas’. Passei a estudar uma forma plástica que sintetizasse as duas bandeiras e esta frase. Enquanto estudava possibilidades para uma composição, saí fotografando vira-latas pelas ruas. Demorei um pouco para chegar numa solução ideal e representar o que queria. Sobrepor a bandeira dos EUA à sua imitação brasileira e vazar a imagem de um cachorro resolveu a obra. Escolhi a imagem de um vira-lata que se encaixou perfeitamente no retângulo. Ao recortá-lo, parte da bandeira da nossa república apareceu e as três imagens se integraram em uma tela que mede 185 x 350 cm”.

Imagem de obra:Complexo de vira-lata, 2023 a 2025. Acrílica sobre tela. 185 por 350 centímetros. Audiodescrição: Sobreposta a uma bandeira dos Estados Unidos da América, há a primeira bandeira do Brasil República, recortada em formato de cachorro. A bandeira dos Estados Unidos, ao fundo, tem listras horizontais vermelhas e brancas e na parte superior, à esquerda, há um retângulo pequeno, azul escuro, com estrelinhas brancas. O cachorro está de perfil para a esquerda, o corpo tem listras horizontais verdes e amarelas, sobrepostas às listras da bandeira debaixo, as verdes sobre as vermelhas e as amarelas sobre as brancas. A cabeça dele é azul com estrelinhas brancas e está sobre o pequeno retângulo estrelado mais escuro da bandeira de baixo.

Texto expositivo: A série nos confirma a polissemia de Renato Valle e sua impressionante capacidade de manter-se íntegro em linguagens aparentemente divergentes. Com frescor pop, ainda que essencialmente mórbido no tema, Valle constrói uma paródia elogiosa a Cildo Meireles – artista multimídia, pioneiro da arte conceitual no Brasil, que em suas Inserções em Circuitos Ideológicos - projeto cédulas, valeu-se da circulação de objetos e mercadorias para driblar e criticar a ditadura militar.

Imagem de obra: Homenagem a Cildo Meireles e Vladimir Herzog, 2023. Impressão em canvas (lona). 100 por 225 centímetros. Audiodescrição: “Quem matou Herzog?” está carimbado sobre uma nota de um cruzeiro ampliada. A nota tem tons de verde e branco e o carimbo é preto e está na diagonal, em destaque. À esquerda, sobre um ornamento verde escuro com quatro pontas em formato de pétalas, tem o número “1” em branco. Ao lado, uma faixa vertical larga e esbranquiçada escrito “um” na parte inferior. O carimbo pega parte da faixa e mais à direita dela. Na parte superior, em letras grandes, “Banco Central do Brasil” e depois, o número “um” em branco sobre um retângulo irregular verde escuro. Abaixo, uma faixa horizontal verde escura escrito “Um cruzeiro” à esquerda dela e à direita, sobre a faixa, há um círculo com uma efígie da República de perfil para a esquerda, um rosto com traços finos, cabelos curtos esvoaçantes e um chapéu com uma estrela no topo. Abaixo da faixa, no centro da nota, há duas assinaturas. E, nos cantos superior esquerdo e inferior direito, as inscrições: “B13544” e “080211”.

Texto expositivo: A obra Homenagem a Cildo Meireles e Vladimir Herzog (2023), uma impressão em canvas, revisita a coragem artística e política de Meireles. Durante a ditadura, Cildo carimbava em cédulas de dinheiro a hoje icônica pergunta: “Quem matou Herzog?”, denúncia direta do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, pelo DOI-CODI. Meio século depois, Renato Valle retoma esse gesto: imprime em grande formato uma cédula marcada pela mesma indagação, agora transformada em peça única e autoral. Assim, celebra a inventividade contestatória de Meireles e reaviva a memória de um período autoritário. Ao reafirmar a atualidade da prática política na arte como exercício de democracia, Valle imprime também liberdade. Se, antes, Meireles recorria ao anonimato como estratégia de circulação da obra, hoje Renato Valle assume publicamente o gesto – como homenagem e continuidade.
Na poética da memória política, Renato articula símbolos para fabular a redundância histórica. Discursos são sintetizados em arquétipos: personagens públicos e notórios ilustram a repetição patológica dos fatos. Numa homenagem ao amigo Gil Vicente, notadamente em sua série Inimigos(2005), retrata-se o Marechal Deodoro da Fonseca prestes a enforcar, sentado e passivo, o imperador deposto Pedro II. Um enorme grafite sobre lona crua, numa superfície pouco usual para o desenho: 2,65 x 2,12 metros.

Imagem de obra: Inimigos - homenagem ao amigo Gil Vicente, 2023 a 2025. Grafite sobre lona crua. 265 por 212 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite sobre uma grande lona clara. Deodoro da Fonseca, montado em um cavalo branco e forte, segurando uma corda que enforca o pescoço do Imperador Pedro II. Os homens são brancos, têm cabelos curtos e bigodes e barbas volumosos. Deodoro tem cerca de 60 anos, usa uniforme militar da cavalaria, casaco escuro com oito botões grandes e claros, sendo quatro de cada lado, calça escura e bota. Ele olha para sua direita, sério – com a mão direita segura a corda no alto e com a esquerda as rédeas do cavalo. O Imperador Pedro II aparenta ter cerca de 70 anos, tem cabelos e barbas brancos e está sentado em uma cadeira de madeira. Ele olha para frente, sério, com a corda em volta do pescoço e as mãos semifechadas sobre as coxas. Ele usa camisa branca, colete e casaco, calça e sapatos pretos.

Renato Valle fala: “Em 2010, havia posado para o último quadro da série Inimigos, do meu amigo Gil Vicente, um dos conjuntos artísticos recentes que mais questionou as instituições. Homenagear o meu colega de profissão e amigo de infância seria, além de uma honra, bastante pertinente. Nos anos em que Gil desenvolveu a série, era visível o crescimento assustador de ‘igrejas’ ordinárias e bilionárias, isentas de impostos, penetrando nos partidos políticos. Durante a Nova República, todos os governantes se associaram, em algum momento, aos representantes dessas ‘religiões’. Muitos pregadores, de teologias esdrúxulas, invadiram todas as instituições, em todas as esferas. O dinheiro fácil e a capacidade de arrebanhar apoio dos seus fiéis deve ser algo muito tentador. Pensei em atualizar a série e comecei a fazer estudo. Porém, o uso de uma imagem de qualquer político vivo me incomodava. Queria falar das causas e não dos sintomas das nossas doenças sociais. Personificar o mal, numa figura atual, desvirtuaria esse propósito. Não podia usar a imagem de Gil em uma composição que desse sequência aos seus Inimigos”.

Texto expositivo: Outro grafite sobre tela, Canudos, Caneca, Diretas… e o Brasil não mais resiste (2006), apresenta horizontalmente, numa superfície de mais de sete por dois metros de altura, traz a junção dos corpos de Cristo, Caneca e Conselheiro no mesmo cadáver. São, portanto, mergulhos em direção harmonicamente opostas: em dissecação, o corpo aponta para a realidade histórica ao redor e na própria subjetividade do artista.

Imagem de obra: Canudos, Caneca, Diretas… e o Brasil não mais resiste, 2006. Grafite sobre lona crua. 212 por 773 centímetros. Audiodescrição: Desenho em grafite sobre uma grande lona clara de um homem negro e magro, com cerca de 60 anos, deitado no chão, de barriga para cima. Está de olhos fechados, com a cabeça à direita e as pernas esticadas à esquerda. Ele tem cabelos curtos, sobrancelhas grossas, nariz largo, barba e fortes marcas de expressão. Os ossos das costelas estão aparentes e ele usa apenas uma bermuda. Está com os cotovelos apoiados no chão, os ombros levantados e a cabeça levemente inclinada para trás.

Texto expositivo: O grafite intenso e obsessivo dramatiza o caráter cadavérico do corpo: Renato Valle rompe com a longa tradição da história da arte, na qual o desenho ocupa lugar secundário. No Renascimento, mesmo em mestres como Leonardo e Michelangelo, o desenho era, sobretudo, esboço preliminar. Nas academias dos séculos XVII e XVIII, consolidou-se a ideia de que o desenho era apenas etapa técnica, degrau para chegar aos gêneros nobres. No modernismo, Picasso e Portinari multiplicaram estudos em papel que permaneceram à sombra das telas e murais. Valle desloca o lugar tradicional do grafite: o que geralmente é rascunho íntimo ganha escala monumental, trazendo à tona rostos e corpos de vítimas da história e da política. Esse gesto não é apenas estético, mas ético: amplia o traço para o tamanho da memória coletiva, devolvendo presença ao que a narrativa oficial tentou apagar. A escala é muscularizada pela técnica: os tons obtidos pelo grafite criam atmosfera opressiva, tensa, pátinas do tempo sobre a história em ciclos.

Renato Valle fala: Na história da arte, o desenho foi visto como estruturador de uma obra maior. Meu papel é defender o desenho como obra em si, autônoma. Não é o passo anterior de uma obra; é a própria obra”.

Texto expositivo: Em brail, Valle retoma Olga Benário Prestes como pauta. Num gigantesco políptico de quatro cenas, ela aparece sóbria - desde a prisão, no Rio de Janeiro, até a penitenciária feminina da Gestapo em Berlim, acusada, além de ser comunista, pelo crimede ser judia. A companheira de Luis Carlos Prestes manteve a altivez antes de ter os cabelos raspados e ser levada ao campo de extermínio de Bernburg. Em outro desenho monumental, Getúlio Vargas figura igualmente sereno, gravata borboleta sugerindo formalidade e certa candura. É o presidente que exigiu pessoalmente ao chefe da polícia política, Filinto Müller, a deportação de Olga para os cuidados de Hitler. Ao lado, em outro quadrante, temos Olga de cabeça raspada em desespero, sob arames farpados, com sua filha Anita Leocádia retirada dos braços. Abaixo, uma imagem silenciosa da câmera de gás, vazia, onde Olga seria executada em 23 de abril de 1942, com 34 anos, junto a outras 199 prisioneiras, várias delas antigas amigas em Berlim ou no Rio de Janeiro. O silêncio da cena reforça a morbidez do ambiente. Valle evoca o contexto brutal que a levou à morte.

Imagem de obra: Uma cena da vida brasileira depois de Câmara, 2023 a 2024. Grafite sobre lona crua. Políptico: 242 por 650 centímetros (conjunto). Audiodescrição: Quatro desenhos em grafite sobre lona, separados entre si. O primeiro, da esquerda para a direita, é Getúlio Vargas visto dos ombros para cima. Ele é um homem branco com cerca de cinquenta anos, cabelos curtos e escuros, com entradas, sobrancelhas delineadas, nariz afilado e boca pequena e fina. Ele está sério e levemente perfilado para a esquerda. Usa camisa e gravata borboleta branca e smoking preto. Ao lado, Olga Benário, uma mulher branca, com cerca de quarenta anos, de cabelos curtos, pretos e ondulados com uma pequena presilha, sobrancelhas finas, nariz achatado e boca pequena. Ela está séria, levemente perfilada para a direita. Usa um casaco escuro com gola. Ao lado, duas imagens menores, uma acima da outra. Na de cima, atrás de duas linhas de arame farpado na horizontal e uma na vertical, Olga está à esquerda, careca e de boca aberta, de perfil, olha para a direita, onde duas mãos com luvas escuras seguram Anitta, sua filha, um bebê branco, recém-nascido, com o cordão umbilical pendurado. Na imagem abaixo, uma câmara de gás, um ambiente escuro, com paredes compridas e sujas, à esquerda e ao fundo, uma porta.

Texto expositivo: Condenada pelos regimes de Vargas e de Hitler, Olga foi conduzida a um campo de extermínio, onde a morte era engenharia e sistema. Conduzidas sob engano, as vítimas eram levadas a câmaras seladas e expostas a gases. O tempo exato dependia de fatores como o tipo de gás, concentração, número de pessoas e ventilação. Em geral, a perda de consciência ocorria em poucos minutos. Em menos de vinte, o oxigênio era impedido de circular nos tecidos; os órgãos entravam em falência total.
O artista transforma essa memória em presença: seu grafite monumental não mostra o horror explicitamente, mas imprime sua gravidade, devolvendo dignidade às vítimas e criando um espaço de lembrança ética. O traço funciona quase como ícone profano, tornando visível a história de sofrimento e resistência que a narrativa oficial tenta ocultar. Eis outra estratégia invulgar do artista: ao usar grafite, material ordinário, ele rompe com a lógica canônica da pintura histórica, cuja figuratividade exalta heróis nacionais e símbolos de poder e evoca representação da virilidade de elementos fálicos em espadas, estandartes, pistolas e canhões para enaltecer heróis articulados em prol de mitos e unidade nacionais. Em suas elaborações, a mitificação se lança sobre o que o establishment pretende ocultar.
Como observadores íntimos da história, voyeurs do terror, somos convidados a perceber seus desenhos não como provas da grandeza técnica e laboral que de fato o artista possui, mas para inverter, em ironia sutilíssima, a tradição canônica da história da arte em santificar forjados heróis nacionais.

Imagem de obra:Tecido social, 2025. Objeto - retalhos de tecidos e folhas de ouro sobre MDF. 200 por 200cm. Audiodescrição: Sobre fundo preto, há um grande mapa do Brasil, feito de retalhos de tecidos coloridos, costurados grosseiramente um nos outros. Há tecidos nas cores amarela, azul, cinza, laranja, verde e estampados. Espalhados pelo mapa, há pequenos pontos dourados de folhas de ouro.

Imagem de obra: Espelho, espelho meu, 2025. Objeto - película, espelhos e molduras de plástico sobre MDF. 200 por 200cm. Audiodescrição: Sobre um fundo preto, há um grande mapa do Brasil feito de diversos espelhos. Há espelhos maiores e pequenos, nos formatos retangulares, redondos e ovais, com molduras laranjas, brancas, douradas, amarelas, vermelhas, azuis, verde, rosa e roxa.










Quase ateu Capítulo 5


Texto expositivo: Renato Valle é um filho da classe média pernambucana. Os colégios eram ainda divididos entre rapazes e moças quando ele nasceu, no bairro central da Boa Vista, em 1958, e, diligentemente, se encarregaram de reforçar a formação religiosa dos jovens com as igrejas da vizinhança. Seu pai provinha de uma família de cristãos-novos, imigrantes da Beira Alta: nascido no Rio de Janeiro, José Valle Júnior se entendia sempre mais como um português expatriado. Vivia entranhado na comunidade lusa da então capital federal. Ainda jovem, é atraído pelas promessas de ganhos de outros imigrantes e parte para o Recife onde, depois de cumprir expediente atrás do balcão de uma perfumaria local, já com o prestigioso cargo de diretor financeiro da loja de departamentos Viana Leal registrado em sua carteira azul expedida pelo Ministério de Trabalho do Brasil, conhece a caruaruense Dona Maria José que, seduzida pelo dono do forte sotaque português, tira o Sales do sobrenome para adotar o Valle em sua nova vida de casada.
Renato seria o caçula de outros cinco irmãos, três homens e duas mulheres, todos pernambucanos. Dona Maria nunca falava da família deixada para trás em Caruaru. Dizia apenas ter tido uma avó muito rica. Como se estivessem mortos, nunca citava a existência dos próprios pais. Muito tempo depois, já adultos, Renato e os irmãos só descobriram que os avós maternos estavam vivos ao encontrar documentos de Dona Maria.
Em casa, José e Maria eram apenas tácita e vagamente católicos. Antes de colocar as mãos no volante, o pai fazia o sinal da cruz sobre si para se abençoar. Devota de Nossa Senhora, a mãe acendia velas em casa, zelava pela imagem da santa no altar da sala, mas evitava intimidades com padres. A família não ia à igreja. Missas, apenas por ocasião de batizados e funerais.
Com a saúde financeira da família vascularizada pelo sucesso da Viana Leal entre as classes médias do Recife, os Valle se mudam para uma casa modernista de dois andares, projetada pelo respeitado arquiteto Delfim Amorim no bairro do Parnamirim, naco nobre da Zona Norte do Recife, quando Renato contava ainda quatro anos de idade. Elizabeth e Rosângela, as filhas moças, passaram a estudar no recatado e respeitadíssimo Colégio das Damas. Os rapazes, Eduardo, Fernando, Carlos, além do próprio Renato, seriam matriculados no prestigioso Colégio São Luís. Alguns anos depois, ele estava já matriculado num colégio misto, porém firmemente católico, quando teve uma das primeiras epifanias a marcar sua memória espiritual – e futura introjeção da religiosidade em sua subjetividade mais íntima.

Imagem de obra: Rosa lendo, 1989. Pastel seco sobre papel. 68 por 48 centímetros. Audiodescrição: Pintura colorida de Rosa sentada com um livro aberto nas mãos e o olhar atento a uma das páginas. Ela é jovem, tem pele branca, cabelos castanhos, volumosos e ondulados, partidos ao meio, com a parte superior presa atrás, sobrancelhas grossas, olhos castanhos, nariz reto e lábios marrons. Veste blusa cinza-claro com caimento solto, acompanhando as curvas do corpo, com gola que lembra uma do tipo polo, assimétrica, e short preto curto. Rosa está com o corpo em suave diagonal para a direita. A cabeça está levemente inclinada para baixo, os ombros relaxados, o cotovelo esquerdo apoiado no encosto de um sofá branco de traços finos, o direito repousado na lateral da barriga e as mãos sustentam o livro de capa marrom na altura do peito. A perna direita está flexionada a noventa graus, o joelho aponta para frente e a coxa repousa sobre o pé esquerdo. A perna esquerda está completamente dobrada, com o joelho em diagonal para a direita. Há uma luz que incide pela lateral direita da pintura, ilumina metade do rosto, o braço apoiado no sofá e reflete na capa do livro. O lado direito de Rosa está em suave penumbra, com forte sombreado destacado na manga da blusa e no braço. O fundo é branco.

Texto expositivo: Era mais um dia de missa na escola em que o menino Renato Valle estudava. Minutos depois de seguir os colegas enfileirados para receber a hóstia das mãos do padre, estava no grupo de garotos, excitados, falantes e contando, uns aos outros, os segredos de confissão ao clérigo. Renato sentiria pela primeira vez uma rachadura quase abrir-se sob os pés, indicando a fronteira entre o céu e o inferno, em pleno pátio do colégio.

Renato Valle fala: “Eu disse que não tinha confessado nada a padre nenhum e que também não tinha feito a primeira comunhão. Aí, meu colega me disse: aquilo era pecado mortal”.

Imagem de obra: A confissão, 1995. Óleo sobre tela. 128 por 196 centímetros. Audiodescrição: Pintura abstrata colorida de dois desenhos cilíndricos, abaulados nos topos, verticais, dispostos lado a lado. Eles são compostos por blocos de cores com faixas verticais e bases escurecidas, em fundo gradiente cinza, sombreado nas bordas. À esquerda, o primeiro desenho tem a metade à esquerda azul, com uma faixa vermelha horizontal mais acima. A lateral direita é vermelha no topo, abaixo tem uma pequena grade retangular azul-escura e mais abaixo, uma parte roxa. Na porção inferior, na linha de encontro do azul com o roxo, há um pequeno detalhe ovalado e amarelo com um ponto vermelho. O desenho da esquerda tem o topo azul-escuro, a lateral superior esquerda lilás, uma faixa horizontal azul-escura e abaixo, azul mais claro. Depois, uma parte vermelha menor na base. A lateral direita superior é roxa, abaixo da faixa, vermelha e, na base, uma parte menor azul-escura. Ao centro da tela, um véu translúcido une as duas formas.

Texto expositivo: O menino não estava preparado para a revelação inesperada da culpa cristã em plena quarta série primária. Recolheu-se num canto da escola. Chorou até o anoitecer. Não conseguia sair dali. Uma afilhada de sua mãe trabalhava como professora no colegiado e teve que levá-lo, com a farda ainda molhada em lágrimas, até em casa.
Depois do jantar em silêncio, passou a noite em claro.

Renato Valle fala:Fiquei lutando para não dormir, porque achava que ia morrer. Tinha que ficar vigilante para me manter vivo”.

Texto expositivo: Ainda que filho de uma família católica pouco ortodoxa e de poucas missas, o menino Renato Valle, sem muito entendimento dos ritos e da estrutura clerical, teve no ambiente escolar – de colégios ainda divididos entre aqueles para meninos e outros, mais restritivos ainda, para meninas, regidos por congregações católicas para a educação dos jovens das classes média e alta no Recife – elementos suficientes para perceber como a religião passaria a ser um problema.

Renato Valle fala:Aquela primeira sensação de culpa me acompanharia por muito tempo”.

Texto expositivo: Quando contava dez anos de idade, Renato dava umas voltas com um amigo perto de casa. No cair da tarde, parou, não sabe dizer por que, diante de uma casa de dois pavimentos. Com toda a sobriedade que o passar dos anos não lhe tirou, ainda adulto Renato recordaria com muita clareza do que viu. No fundo do quintal, havia uma senhora. No primeiro andar, próximo da calçada onde estavam, ele e o colega viram, de costas para a rua, o corpo de uma mulher flutuando. Renato ensaiou correr, mas teve que voltar para dar um tapa e fazer o amigo, paralisado de medo, voltar a se mexer. Confirmada ou não a mediunidade involuntária do pequeno Renato, poucos dias depois do evento, a moça que dormia naquele quarto encerrou a própria vida com um tiro.
Dona Maria não duvidou da revelação do filho. Confidenciou ter, desde sempre, visões semelhantes. Não reveladas aos outros, com medo que lhe tomassem por insana. A cumplicidade estava estabelecida entre mãe e filho – e uma espiritualidade tão intensa como imprecisa passaria a interferir na subjetivação do mundo pelo artista.
Se o catolicismo formal lhe marcou na infância, principalmente por estudar em colégios católicos, a adolescência foi marcada por uma quase descrença. Não fossem as “experiências estranhas” que lhe impediram de ser um total descrente, Valle acredita que teria se tornado um ateu. Foi só adulto, com interesse profissional, ao conhecer Zuleno, uma pessoa profundamente espírita, que Valle se influencia e passa ler bastante sobre a doutrina.

Nota do editor: Zuleno Ferreira da Veiga Pessoa (1915 – 2008), artista pernambucano, nascido em Pesqueira e radicado no Recife. Teve grande inflexão na formação de Renato Valle, menos no que diz respeito às técnicas, mas, fundamentalmente, no entendimento da vida de artista, do pensamento filosófico e na fé.

Renato Valle fala: “Sou leitor do Evangelho e me considero um religioso que não simpatiza muito com as religiões. Pertencer a alguma não torna alguém melhor do que alguém que não pertença. As religiões atemorizam com o inferno ou umbral, com o demônio ou obsessor, que no fundo são muito semelhantes. Ao mesmo tempo, falam do céu ou de colônias espirituais pra onde iremos depois da morte. A ênfase do Evangelho, no entanto, se resume no que Jesus chamou de Mandamento Maior, que possui dois itens: o primeiro ‘Amar a Deus’; o segundo (para ele, tão importante quanto o primeiro), ‘Amar o próximo como a si mesmo’. Isto para mim deixa claro que estamos aqui e agora e é nisto que temos de nos concentrar, nos colocarmos no lugar do outro, ser solidário, fraterno, assistir aos necessitados, nos esforçamos para construirmos uma sociedade mais justa”.

Imagem de obra: Dilatação perispiritual, 1993. Litografia. 31 por 21 centímetros. Audiodescrição: Imagem monocromática com tinta preta sobre papel branco de um homem com o corpo disforme e gigante, de perfil para a esquerda. Ele tem a cabeça pequena, com dobras na parte de trás, é careca, tem nariz grande, inclinado para baixo e boca pequena. O homem de pele dilatada, tem no corpo volumes de pele com tamanhos variados, que vão do pescoço aos pés. Ele é muito corcunda, tem o braço inchado e mão pequena. A perna é arredondada e o pé inchado e pequeno. Ele olha para a esquerda com expressão séria, parece estar sentado sobre o próprio corpo, sendo a nádega uma grande esfera apoiada ao chão. A luz incide pela esquerda, ilumina o rosto e a parte da frente do corpo, deixando o lado oposto sombreado. O homem está em um ambiente com o piso de padrão geométrico, com quadrados e triângulos pretos e brancos. O fundo é uma parede cinza.

Renato Valle fala: “Fazer as coisas com medo do inferno ou querendo ir pro céu como um prêmio não faz sentido. Daí minha dificuldade em pertencer a grupos específicos. Pertenço à Espécie Humana, é a minha espécie que defendo, aliás é a única que pode ser considerada a ‘praga do mundo’, nenhuma outra é capaz de destruí-lo. Basta um idiota com armas atômicas apertar um botão e viramos poeira, ainda de quebra podemos desequilibrar todo o sistema solar, a galáxia... O pior é quando essas instituições usam a promessa de um céu e o pavor de um inferno para enriquecer, extorquir e, enfim, obter o poder na terra!”

Texto expositivo: Nem propriamente crédulo, nem ateu - muito pelo contrário -, o artista teria, desde então, na dicotomia entre vida e morte, um estranhamento, como se os opostos fizessem parte de um mesmo e único dínamo. Nos ritos de passagem intra espiritual e corpóreos - nascimentos e velórios, notadamente - a reunião de pessoas em torno da transição entre mundos lhe interessam pelo caráter cerimonial em torno do que é tão previsível e ordinário quanto, ao mesmo tempo, misterioso e impreciso.
Numa paleta em que o preto, o branco e o cinza experimentam variações possíveis, como reverberações cromáticas da ausência de cor na morte explorada, para além dos personagens, na volumetria geométrica de um quadro na parede e no piso ladrilhado de um cômodo onde um corpo é velado, o artista encontra soluções formais exemplares para tipificar a formalidade do evento.
Na tela O Velório (1,81 x 2,75 m, 1988), um raro óleo sobre eucatex com assinatura de Valle, a cabeça do morto surge no espaço do caixão semicerrado. De geometria calculada, impositiva, seu corpo é arredondado como os demais personagens em cena. Cinco pessoas que, tão alheias ao morto como este, esperadamente, a elas, mantêm, cada uma, a atenção em livros sobre os colos. Leem como se informassem não haver susto com a morte; o fim é apenas uma etapa da existência. Os polípticos Álbum de família (0,45 x 2,95 m, 1992) e Álbum de Recordações (0,45 x 2,95 m, 1992) estruturam-se no mesmo formalismo, cenas de personagens estanques, alternando ritos: sexo, amor, gestação, compromissos, fotografias em família.

Imagem de obra: O velório, 1988. Óleo sobre Duratex. 181 por 275 centímetros. Audiodescrição: Pintura em preto e branco de uma sala. Há um homem morto, com apenas seu rosto à mostra, em um caixão entreaberto, e cinco pessoas sentadas ao redor, todos voltados para o defunto e com livros abertos sobre o colo. Todos são brancos e possuem traços arredondados. O caixão está na parte inferior direita da pintura, na horizontal. A cabeça do homem está à esquerda. Ele aparenta ter meia-idade, é calvo, tem marcas de expressão na testa, olhos fechados, com as pálpebras e bolsas de olheiras escuras, nariz reto e lábios pequenos e escuros. A tampa do caixão cobre todo o rosto, até seu queixo, nela há uma cruz. À esquerda, sentada em uma cadeira, uma mulher está de perfil para a direita, com a cabeça levemente inclinada para baixo, tem cabelos pretos, lisos, penteados para trás, sobrancelha fina, pálpebra baixa, nariz grande e curvado, lábios finos e queixo pontudo. Usa vestido longo, branco, com mangas bufantes na altura dos cotovelos e sapatos pretos. Ela está com os cotovelos apoiados nos braços da cadeira e segura um livro grande de capa preta sobre as pernas juntas. Ao centro, mais atrás, há quatro pessoas sentadas em um banco, todos têm traços semelhantes, usam meias três quartos e sapatos pretos: Uma menina grande com cabelos escuros, partidos ao meio, com uma trança de cada lado, na altura dos ombros, usa vestido branco na altura das coxas. Ela folheia um livro grande de capa preta; Também um menino pequeno, com cabelos para a esquerda, usa óculos, camisa de botões, short curto estica as pernas no ar. Ele está com a cabeça inclinada para o pequeno livro que segura e as pernas penduradas; Então, um rapaz grande, com cabelos para a esquerda, usa camiseta sobre blusa de mangas, short curto, suas meias são listradas, está com o livro apoiado na coxa e uma das mãos sobre as páginas; E, por último, uma jovem grande, com os cabelos para trás, usa vestido com gola larga que cobre os ombros, branco, na altura das coxas. Ela está com a cabeça inclinada em direção a página esquerda de um livro grande de capa preta. Atrás deles, centralizado sobre a parede cinza, há um quadro grande com faixas onduladas, formas geométricas e setas, em vários tons. No canto esquerdo, atrás da mulher de perfil, há uma janela fechada. O piso da sala é composto por ladrilhos retangulares com padrão geométrico de formas internas abauladas que intercalam branco e preto, como um tabuleiro.

Texto expositivo: Dedicadíssima aos seis filhos, a mãe do artista destilava talentos manuais extraordinários. Dona Maria José teve pouca educação formal, mas era uma bordadeira afamada. O filho lembraria.

Renato Valle Fala:Era difícil identificar o lado certo de uma toalha de linho que ela bordasse”.

Texto expositivo: Quando a mãe morreu, em 2013, a família contava poucos bens a serem partilhados. Os filhos começaram a dividir móveis, lustres, pequenas coisas. Renato ficou apenas como uma velha agulha de crochê encontrada numa gaveta – uma herança tão longeva como a espiritualidade materna. Por meio do objeto, a influência artesã materna se insinuava mais tardiamente na obra de Renato: o artista usa a agulha com grafite para imprimir sulcos e contornos de baixo relevo em algumas obras das séries Augusta com Itu (2013) eMemórias de uma agulha de crochê e outras memórias (2014 – 2015). Detalhistas, os traços pareciam bordados. Lembravam os bicos-de-pena feitos no final dos anos 1970, cujas texturas remetem também à bordadura.

Imagem de obra: Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias(detalhe), 2014. Agulha de crochê e grafite sobre papel. Políptico: 384 desenhos, 8 por 8 centímetros (cada). Audiodescrição: Recorte da série “Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias” que, ao todo, forma um painel em mosaico com 384 desenhos. Este detalhe tem formato quadrado, dividido em seis partes: duas quadradas, ao centro, e duas retangulares em cada lateral. No quadrado central superior, tem o desenho em grafite claro de uma boca com lábios grossos e volumosos e um queixo arredondado; a pessoa veste uma roupa feita por linhas brancas e finas, com flores e ramos de folhas estampadas com traços em baixo-relevo e grafite. No quadrado inferior, tem a mão esquerda com o dorso para cima, pintada de grafite escuro. A mão está numa postura de apoio com os dedos para baixo e levemente dobrados. No punho, há um bordado decorativo na borda de uma blusa de manga comprida, feito com o desenho dos sulcos em linhas finas e brancas da agulha de crochê. Na lateral esquerda, no retângulo superior, há o desenho em linhas brancas, gravadas à ponta seca e destacadas pelo grafite denso, da metade de um rosto, com detalhes brancos na testa e maçã do rosto. No retângulo abaixo, há um grafite com detalhes em baixo-relevo em linhas diagonais, brancas e finas, na base. No retângulo superior direito, há o desenho em grafite de parte de uma mão com o punho para cima, os sulcos da agulha formam linhas brancas em círculos, são o botão da manga de uma vestimenta. No retângulo abaixo, há o desenho em grafite escuro de parte da cabeça e ombro direito de uma pessoa. No ombro há traços da pressão da ponta da agulha, finos e brancos, com linhas espirais-circulares.

Renato Valle fala: “Achei que tinha essa coisa de bordado, herdada da minha mãe, que eu percebi ali. Minha mãe era simples, muito sincera, generosa e tinha um gênio forte. Mas estabeleceu muitos vínculos de afeto”.

Texto expositivo: Preciosista, a série Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias começa com um mosaico composto por 384 desenhos, medindo 8 x 8 cm cada. Primeiro as linhas marcadas em sulcos pela força da agulha sobre o papel; em seguida grafites de durezas e espessuras diferentes na elaboração de volumes e texturas. Desenhos que seriam expostos apenas no ano de 2015, na Galeria Arte Plural, no Recife.

Renato Valle fala: São desenhos feitos com intervenções da agulha de crochê de Dona Maria, uma agulha carregada de muitas histórias, e com o grafite que realça as marcas profundas no papel”.

Imagem de obra: Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias(detalhe), 2014. Agulha de crochê e grafite sobre papel. Políptico: 384 desenhos, 8 por 8 centímetros (cada). Audiodescrição: Recorte da série “Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias” que, ao todo, forma um painel em mosaico com 384 desenhos. Este detalhe tem formato quadrado, dividido em seis partes: duas quadradas, ao centro, e duas retangulares em cada lateral. No quadrado central superior, tem o desenho em grafite claro de uma boca com lábios grossos e volumosos e um queixo arredondado; a pessoa veste uma roupa feita por linhas brancas e finas, com flores e ramos de folhas estampadas com traços em baixo-relevo e grafite. No quadrado inferior, tem a mão esquerda com o dorso para cima, pintada de grafite escuro. A mão está numa postura de apoio com os dedos para baixo e levemente dobrados. No punho, há um bordado decorativo na borda de uma blusa de manga comprida, feito com o desenho dos sulcos em linhas finas e brancas da agulha de crochê. Na lateral esquerda, no retângulo superior, há o desenho em linhas brancas, gravadas à ponta seca e destacadas pelo grafite denso, da metade de um rosto, com detalhes brancos na testa e maçã do rosto. No retângulo abaixo, há um grafite com detalhes em baixo-relevo em linhas diagonais, brancas e finas, na base. No retângulo superior direito, há o desenho em grafite de parte de uma mão com o punho para cima, os sulcos da agulha formam linhas brancas em círculos, são o botão da manga de uma vestimenta. No retângulo abaixo, há o desenho em grafite escuro de parte da cabeça e ombro direito de uma pessoa. No ombro há traços da pressão da ponta da agulha, finos e brancos, com linhas espirais-circulares.
A agulha, em liturgia muito íntima, passaria a ser uma espécie de objeto votivo entre as ferramentas no ateliê do artista. Os contornos em baixo relevo, uma propriedade na prática do desenho em Renato Valle.

Imagem de obra: Oferenda, 2015. Agulha de crochê e grafite sobre papel. 62 por 47 centímetros. Audiodescrição: Desenho de um coração humano, de traço branco e fino, em baixo-relevo, completamente preenchido com padrões repetitivos de espirais, ramificações de folhas, arabescos e ondulações variadas, sobre um fundo pintado de grafite cinza-escuro. Na parte superior do coração, há quatro vasos sanguíneos grossos apontados para cima. De um deles saem ramificações de folhas que crescem pela esquerda. No canto superior direito, um átrio do órgão, há um conjunto volumoso de espirais. Todas as linhas do detalhamento interno são contínuas e delicadas. O fundo escuro uniforme está mais sombreado próximo à linha que contorna o coração.









Bibliografia

ALBERTIM, Bruno.Uma dimensão política da na obra de Renato Valle. Jornal do Commercio, Recife, 30 de maio de 2017. Caderno C.

ALBERTIM, Bruno. Renato Valle: Fé numa vida que arranha. In: ALBERTIM, Bruno (org.) Renato Valle. Recife: CEPE, 2024.

ALBERTIM, Bruno.Pernambuco Modernista. Recife: Cepe, 2022.

LIMA, Joana D`Arc. Renato Valle: Constelações. In: ALBERTIM, Bruno (org.)

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DINIZ, Clarissa. Cristos Anônimos - Desenho, experimentação e religiosidade política na obra de Renato Valle. Catálogo da exposição [Galeria Ronaldo White, SESC]. Garanhuns–PE, 2012.

DOBBIN – TODË, Diogo. Renato Valle e a perspectiva do artista-professor. In: ALBERTIM, Bruno (org.) Renato Valle. Recife: CEPE, 2024.

DOBBIN - TODË, Diogo. Valle-Educa: a ensinagem de Renato Valle, artista-pesquisador-educador. Recife: Todë, 2021. 1550 p. Disponível em: https://www.calameo.com/books/007046159dee83687e9c9 Acesso em: outubro de 2025.

DOS ANJOS, Moacir.Bandido bom é bandido morto. In: ALBERTIM, Bruno (org.) Renato Valle. Recife: CEPE, 2024.

FARIAS, Agnaldo:Renato Valle, sem retoques. In: ALBERTIM, Bruno (org.) Renato Valle. Recife: CEPE, 2024.

FARIAS,Valquíria. Religiosidade e política na obra de Renato Valle. Texto de exposição [Galeria Janete Costa]. Recife, 2017.

GOUVEIA, Bete.As Escolhas de Renato Valle. Texto de exposição [Arte Plural Galeria]. Recife, 2019.

LEAL, Virgínia.“Cristos e Anticristos” de Renato Valle. Texto de exposição [Galeria Capibaribe, CAC/UFPE e Dumaresq Galeria de Arte]. Recife, 2012.

MAUSS, Lília. Ensaios sobre dádiva, expurgo e promessa: a paixão silenciosa de Renato Valle. In: ALBERTIM, Bruno (org.) Renato Valle. Recife: CEPE, 2024.

VALLE, Renato.Amós Votos Hieronymus. Texto de exposição [Museu Murillo La Greca]. Recife, 2011.

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VALLE, Renato; Todë, Diogo Dobbin (ed.).História de sono, de sonho e de morte. [Recife: Livrinho de Papel Finíssimo Editora], 2009. Livro de arte. Disponível em: https://www.calameo.com/books/00704615979b51bd2bccc Acesso em: outubro de 2025.

VALLE, Renato. Perdidos no espaço!. 2016. [Recife: IAC/UFPE – Instituto de Arte Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco]. Impressão em sign vinílico. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1mUKKd2QqUq4rOvc8zAyEjshr-M66xzULY/view Acesso em: outubro de 2025.

VALLE, Renato. Sem título. In: GALERIA Officina. Pinturas – Renato Valle. Recife: Galeria Officina, 1989. Catálogo. Disponível em: https://www.calameo.com/books/007046159b7c1efa57dec Acesso em: outubro de 2025.

WILNNER, Renata.Cristos e Anticristos, Renato Valle. Texto de exposição [Galeria Capibaribe, CAC/UFPE e Dumaresq Galeria de Arte]. Recife, 2012.









Equipe e expediente


Renato Valle - Coordenador artístico

Nascido em 1958, no bairro da Boa Vista, Recife, quando criança moldava personagens de gibis e bichos de barro. Aos 16 anos iniciou, “por brincadeira”, experimentações com nanquim e grafite até decidir, no fim dos anos 1970, dedicar-se integralmente à arte. Autodidata, mediado pela experimentação e por breves cursos livres com colegas artistas, constituiu uma prática diversa, de aclamado rigor técnico, que abrange desenho, pintura, gravura, escultura, fotografia e instalação. Sua obra escapa a classificações e categorias, transita entre o figurativo e o abstrato, do íntimo ao monumental. Corpos deformados, seres suspensos e figuras plácidas ou em êxtase apontam, poéticocontundentes, temas do mundo contemporâneo, como as relações de poder, a experiência humana, infância, vulnerabilidade, violência, política, religiosidade, sociedade.
Valle aporta sua arte como instrumento para investigar temas densos, para o pensamento crítico, ansiosa por abrir caminhos da transformação social. Para Renato Valle, a arte é necessidade vital – “como comer, respirar, andar” –, sustentando cinco décadas de uma trajetória das mais sólidas na arte contemporânea pernambucana e brasileira. Audiodescrição: Um homem adulto, de pele clara, com cabelos curtos e grisalhos. Ele usa óculos de armação azul e veste uma camiseta escura. O homem olha diretamente para a câmera, com expressão tranquila e leve sorriso. O fundo é composto por uma parede com pintura geométrica em tons de cinza e vermelho, que ocupa parte do enquadramento. A iluminação é suave e uniforme, destacando o rosto do homem e os detalhes da armação dos óculos. A foto é um retrato em ambiente interno, enquadrado dos ombros para cima, com foco nítido no rosto e fundo ligeiramente desfocado.


Bruno Albertim - Escritor

Antropólogo, jornalista e curador nascido em Olinda, destaca-se pela capacidade de articular instituições, crítica e edição em torno da arte e da cultura. É um relevante jornalista que difunde pensamento artístico, crítico que interroga cânones e curador/editor que colabora e promove publicações de arte. Articulista e repórter de jornais e revistas especializadas e autor de livros próprios, sua escrita reflete profundo interesse pelas identidades culturais do Brasil e do Nordeste. Por investigar as relações entre alimentação e identidade nordestina, foi consagrado em um dos mais prestigiosos prêmios do jornalismo brasileiro. Em pesquisas recentes, revisita o modernismo pernambucano, questionando a hegemonia paulista e destacando a vitalidade local das vanguardas. Enquanto curador, catalisa reações entre memória e contemporaneidade, tensionando os eixos centrais da arte brasileira. Sua atuação articula resgates, reescrita, microidentidades e reafirma o compromisso ético e estético com o pensamento crítico, a diversidade e narrativas culturais e artísticas do país. Audiodescrição: Um homem adulto, de pele morena clara, com cabelo preto, crespo e volumoso. Ele usa óculos de armação grossa e retangular, e está vestido com um blazer claro sobre uma camisa também clara. O homem olha diretamente para a câmera, com expressão neutra. Ao fundo, há uma escultura branca de um cavalo empinado, com um cavaleiro montado, posicionada em um ambiente interno bem iluminado, sugerindo que a foto foi tirada em um espaço de arte, possivelmente um museu ou galeria. O enquadramento mostra o homem dos ombros para cima, em foco, enquanto o fundo aparece ligeiramente desfocado, mas com destaque para a obra de arte.


Diogo Dobbin Todé - Editor-chefe e produtor

Recifense, é editor de livros, produtor, expógrafo e arte-educador. O factótum atua com ênfase nas artes plásticas, pelos campos da criação, mediação e difusão cultural. Desde o início dos anos 2000, se engaja em exposições, publicações, oficinas e mídias diversas. Propõe repensar o livro como objeto de arte e crítica – interface entre público e obra, para além do simples suporte impresso. Suas edições independentes adotam recortes experimentais e caráter autoral, publicando gerações de artistas e distintas linguagens visuais. Com olhar atento às camadas simbólicas da imagem e às potencialidades das mídias, entende o ato de editar como gesto político e poético: problematizar, expandir, conectar e subverter o tradicional, o suporte e o editorial. Audiodescrição: Um homem de barba cheia e escura, com alguns fios grisalhos, usando uma boina preta e uma camisa também escura. Ele está de perfil, voltado levemente para seu lado esquerdo, com o olhar direcionado para cima, como se observasse algo fora do enquadramento. O fundo é um muro coberto por um grafite colorido, com predominância de traços amarelo, azul e preto, formando letras. A iluminação é natural e suave, sugerindo que a foto foi tirada ao ar livre, durante o dia. O enquadramento corta a imagem na altura do peito, e o foco está no rosto e na expressão serena do homem, em contraste com o fundo vibrante e texturizado.


V O T O S, somos:

Renato Valle

Coordenador artístico

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Escritor e comunicação

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Editor-chefe e produtor

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Dionísio
Produtor local - Caruaru

Igor Lopes
Produtor local - Surubim

J. Melo
Produtor local - Tracunhaém

Cristiana Dias
Fotos

Luciana Ourique
Imagens de divulgação e lançamento

Fernando Peres e Diogo Dobbin Todé
Edição de vídeos

Assconta Assessoria Contábil e Fiscal e Contcomigo
Gestão contábil

As Imagens do acervo de Renato Valle foram feitas por: Cristiana Dias, Eduardo Almeida, Flávio Lamenha, Gil Vicente, Gustavo Bettini, Helder Ferrer, Mariana Lemmertz, Paulo Melo Junior e Robson Lemos, com a colaboração de estudantes, professores, estagiários e funcionários de instituições.







Renato Valle agradece à filha Maria Luz, Ana Lisboa, Eduardo Machado, Gil Vicente, Marcelo Silveira, Martinho Patrício, Paulo Bruscky e Valquíria Farias, pela participação no Diário de votos e ex-votos e Cristos anônimos. Às fotógrafas e fotógrafos que registraram obras e trajetória, em especial àqueles com fotos neste livro. À Eugênia, a primeira Arte-educadora, que ensinava fazer pequenos bonecos de barro – de quem tem a clara lembrança, nesses momentos aos 5 anos de idade.

Diogo Dobbin – Todé pede benção, Doris Dobbin (in memoriam), Lilia Dobbin, Rossana B. Tavares, Maria Clara Tavares, Bia e família Dobbin, família Numeriano, Ivone e Marcelo Fazolin.

Os melhores VOTOS para Felipe Cabral, por sua amizade e disponibilidade com este projeto.

Em agradecimento por sua vida, Paulo Ferreira (in memoriam).









Governo do Estado de Pernambuco

Raquel Teixeira Lyra Lucena
Governadora de Pernambuco

Priscila Krause Branco
Vice-governadora de Pernambuco


Fundarpe / Funcultura

Renata Duarte Borba

Diretora-Presidente

Lidiane Pessoa Candido
Diretora Vice-Presidente

Clarice de MeloAndrade
Diretora de Fomento

Lucas Vinícius Nunes Silva
Superintendente de Gestão do Funcultura


Museu do Estado de Pernambuco

Rinaldo Carvalho

Diretor

Eunice Couto
Assessora

Adilson Pereira da Silva
Supervisores de Manutenção






Colofão

Tipografia: Família Humanst521 BT
Formato: Retrato em 22 x 31cm.

Recife, em novembro de 2025, Sob demanda de Todé





























RECIFE.NOV.2025
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  RENATO VALLE & BRUNO ALBERTIM  
    RELIGIOSIDADE E POLÍTICA      

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