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RECIFE.NOV.2025
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    Quase ateu    













Renato Valle é um filho da classe média pernambucana. Os colégios eram ainda divididos entre rapazes e moças quando ele nasceu, no bairro central da Boa Vista, em 1958, e, diligentemente, se encarregaram de reforçar a formação religiosa dos jovens com as igrejas da vizinhança. Seu pai provinha de uma família de cristãos-novos, imigrantes da Beira Alta: nascido no Rio de Janeiro, José Valle Júnior se entendia sempre mais como um português expatriado. Vivia entranhado na comunidade lusa da então capital federal. Ainda jovem, é atraído pelas promessas de ganhos de outros imigrantes e parte para o Recife onde, depois de cumprir expediente atrás do balcão de uma perfumaria local, já com o prestigioso cargo de diretor financeiro da loja de departamentos Viana Leal registrado em sua carteira azul expedida pelo Ministério de Trabalho do Brasil, conhece a caruaruense Dona Maria José que, seduzida pelo dono do forte sotaque português, tira o Sales do sobrenome para adotar o Valle em sua nova vida de casada.








SEM TÍTULO 1985
Bico de pena sobre papel
23 x 32,5 cm







Renato seria o caçula de outros cinco irmãos, três homens e duas mulheres, todos pernambucanos. Dona Maria nunca falava da família deixada para trás em Caruaru. Dizia apenas ter tido uma avó muito rica. Como se estivessem mortos, nunca citava a existência dos próprios pais. Muito tempo depois, já adultos, Renato e os irmãos só descobriram que os avós maternos estavam vivos ao encontrar documentos de Dona Maria.

Em casa, José e Maria eram apenas tácita e vagamente católicos. Antes de colocar as mãos no volante, o pai fazia o sinal da cruz sobre si para se abençoar. Devota de Nossa Senhora, a mãe acendia velas em casa, zelava pela imagem da santa no altar da sala, mas evitava intimidades com padres. A família não ia à igreja. Missas, apenas por ocasião de batizados e funerais.





SEM TÍTULO 1985
Bico de pena sobre papel
23 x 32,5 cm





Com a saúde financeira da família vascularizada pelo sucesso da Viana Leal entre as classes médias do Recife, os Valle se mudam para uma casa modernista de dois andares, projetada pelo respeitado arquiteto Delfim Amorim no bairro do Parnamirim, naco nobre da Zona Norte do Recife, quando Renato contava ainda quatro anos de idade. Elizabeth e Rosângela, as filhas moças, passaram a estudar no recatado e respeitadíssimo Colégio das Damas. Os rapazes, Eduardo, Fernando, Carlos, além do próprio Renato, seriam matriculados no prestigioso Colégio São Luís. Alguns anos depois, ele estava já matriculado num colégio misto, porém firmemente católico, quando teve  uma das primeiras epifanias a marcar sua memória espiritual – e futura introjeção da religiosidade em sua subjetividade mais íntima.












BETH LENDO 1989
Pastel seco sobre papel
64 x 86 cm



ROSA LENDO 1989
Pastel seco sobre papel
68 x 48 cm









Era mais um dia de missa na escola em que o menino Renato Valle estudava. Minutos depois de seguir os colegas enfileirados para receber a hóstia das mãos do padre, estava no grupo de garotos, excitados, falantes e contando, uns aos outros, os segredos de confissão ao clérigo. Renato sentiria pela primeira vez uma rachadura quase abrir-se sob os pés, indicando a fronteira entre o céu e o inferno, em pleno pátio do colégio. “Eu disse que não tinha confessado nada a padre nenhum e que também não tinha feito a primeira comunhão”, ele lembraria. “Aí, meu colega me disse: aquilo era pecado mortal.”







O menino não estava preparado para a revelação inesperada da culpa cristã em plena quarta série primária. Recolheu-se num canto da escola. Chorou até o anoitecer. Não conseguia sair dali. Uma afilhada de sua mãe trabalhava como professora no colegiado e teve que levá-lo, com a farda ainda molhada em lágrimas, até em casa.






A CONFISSÃO 1995
Óleo sobre tela
128 x196 cm






Depois do jantar em silêncio, passou a noite em claro. “Fiquei lutando para não dormir, porque achava que ia morrer. Tinha que ficar vigilante para me manter vivo”. Ainda que filho de uma família católica pouco ortodoxa e de poucas missas, o menino Renato Valle, sem muito entendimento dos ritos e da estrutura clerical, teve no ambiente escolar – de colégios ainda divididos entre aqueles para meninos e outros, mais restritivos ainda, para meninas, regidos por congregações católicas para a educação dos jovens das classes média e alta no Recife – elementos suficientes para perceber como a religião passaria a ser um problema. “Aquela primeira sensação de culpa me acompanharia por muito tempo.”

Quando contava dez anos de idade, Renato dava umas voltas com um amigo perto de casa. No cair da tarde, parou, não sabe dizer por que, diante de uma casa de dois pavimentos. Com toda a sobriedade que o passar dos anos não lhe tirou, ainda adulto Renato recordaria com muita clareza do que viu. No fundo do quintal, havia uma senhora. No primeiro andar, próximo da calçada onde estavam, ele e o colega viram, de costas para a rua, o corpo de uma mulher flutuando. Renato ensaiou correr, mas teve que voltar para dar um tapa e fazer o amigo, paralisado de medo, voltar a se mexer. Confirmada ou não a mediunidade involuntária do pequeno Renato, poucos dias depois do evento, a moça que dormia naquele quarto encerrou a própria vida com um tiro.







APOCALIPSE 1987
Bico de pena
25 x 69 cm






Dona Maria não duvidou da revelação do filho. Confidenciou ter, desde sempre, visões semelhantes. Não reveladas aos outros, com medo que lhe tomassem por insana. A cumplicidade estava estabelecida entre mãe e filho – e uma espiritualidade tão intensa como imprecisa passaria a interferir na subjetivação do mundo pelo artista.







Se o catolicismo formal lhe marcou na infância, principalmente por estudar em colégios católicos, a adolescência foi marcada por uma quase descrença. Não fossem as “experiências estranhas” que lhe impediram de ser um total descrente, Valle acredita que teria se tornado um ateu. Foi só adulto, com interesse profissional, ao conhecer Zuleno1, uma pessoa profundamente espírita, que Valle se influencia e passa ler bastante sobre a doutrina.




HISTÓRIA DE SONO DE SONHO E DE MORTE (SELEÇÃO) 2009
Grafite sobre papel
10,5 x 14,8 cm (cada)







Sou leitor do Evangelho e me considero um religioso que não simpatiza muito com as religiões. Pertencer a alguma não torna alguém melhor do que alguém que não pertença. As religiões atemorizam com o inferno ou umbral, com o demônio ou obsessor, que no fundo são muito semelhantes. Ao mesmo tempo, falam do céu ou de colônias espirituais pra onde iremos depois da morte. A ênfase do Evangelho, no entanto, se resume no que Jesus chamou de Mandamento Maior, que possui dois itens: o primeiro ‘Amar a Deus’; o segundo (para ele, tão importante quanto o primeiro), ‘Amar o próximo como a si mesmo’. Isto para mim deixa claro que estamos aqui e agora e é nisto que temos de nos concentrar, nos colocarmos no lugar do outro, ser solidário, fraterno, assistir aos necessitados, nos esforçamos para construirmos uma sociedade mais justa


DILATAÇÕES PERISPIRITUAIS 1991
Carvão sobre papel
Políptico: 36 x 26 cm (cada)





DILATAÇÃO PERISPIRITUAL 1993
Litografia
31 x 21 cm




Fazer as coisas com medo do inferno ou querendo ir pro céu como um prêmio não faz sentido. Daí minha dificuldade em pertencer a grupos específicos. Pertenço à Espécie Humana, é a minha espécie que defendo, aliás é a única que pode ser considerada a ‘praga do mundo’, nenhuma outra é capaz de destruí-lo. Basta um idiota com armas atômicas apertar um botão e viramos poeira, ainda de quebra podemos desequilibrar todo o sistema solar, a galáxia... O pior é quando essas instituições usam a promessa de um céu e o pavor de um inferno para enriquecer, extorquir e, enfim, obter o poder na terra!





Nem propriamente crédulo, nem ateu - muito pelo contrário -, o artista teria, desde então, na dicotomia entre vida e morte, um estranhamento, como se os opostos fizessem parte de um mesmo e único dínamo. Nos ritos de passagem intra espiritual e corpóreos - nascimentos e velórios, notadamente - a reunião de pessoas em torno da transição entre mundos lhe interessam pelo caráter cerimonial em torno do que é tão previsível e ordinário quanto, ao mesmo tempo, misterioso e impreciso.

Numa paleta em que o preto, o branco e o cinza experimentam variações possíveis, como reverberações cromáticas da ausência de cor na morte explorada, para além dos personagens, na volumetria geométrica de um quadro na parede e no piso ladrilhado de um cômodo onde um corpo é velado, o artista encontra soluções formais exemplares para tipificar a formalidade do evento.








O VELÓRIO
1988
Óleo sobre Duratex
181 x 275 cm






Na tela O Velório (1,81 x 2,75 m, 1988), um raro óleo sobre eucatex com assinatura de Valle, a cabeça do morto surge no espaço do caixão semicerrado. De geometria calculada, impositiva, seu corpo é arredondado como os demais personagens em cena. Cinco pessoas que, tão alheias ao morto como este, esperadamente, a elas, mantêm, cada uma, a atenção em livros sobre os colos. Leem como se informassem não haver susto com a morte; o fim é apenas uma etapa da existência. Os polípticos Álbum de família (0,45 x 2,95 m, 1992) e Álbum de Recordações (0,45 x 2,95 m, 1992) estruturam-se no mesmo formalismo, cenas de personagens estanques, alternando ritos: sexo, amor, gestação, compromissos, fotografias em família.











ÁLBUM DE FAMÍLIA
1992
Óleo sobre tela
Políptico: 45 x 295 cm
ÁLBUM DE RECORDAÇÕES
1992
Óleo sobre tela
Políptico: 45 x 295 cm








Dedicadíssima aos seis filhos, a mãe do artista destilava talentos manuais extraordinários. Dona Maria José teve pouca educação formal, mas era uma bordadeira afamada. “Era difícil identificar o lado certo de uma toalha de linho que ela bordasse”, o filho lembraria. Quando a mãe morreu, em 2013, a família contava poucos bens a serem partilhados.

Os filhos começaram a dividir móveis, lustres, pequenas coisas. Renato ficou apenas como uma velha agulha de crochê encontrada numa gaveta – uma herança tão longeva como a espiritualidade materna. Por meio do objeto, a influência artesã materna se insinuava mais tardiamente na obra de Renato: o artista usa a agulha com grafite para imprimir sulcos e contornos de baixo relevo em algumas obras das séries Augusta com Itu (2013) e Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias (2014 – 2015). Detalhistas, os traços pareciam bordados. Lembravam os bicos-de-pena feitos no final dos anos 1970, cujas texturas remetem também à bordadura.









AMÉM NÃO ERA AMEM
2013
Agulha de crochê e grafite sobre papel
29,7 x 42 cm









Achei que tinha essa coisa de bordado, herdada da minha mãe, que eu percebi ali. Minha mãe era simples, muito sincera, generosa e tinha um gênio forte. Mas estabeleceu muitos vínculos de afeto


























MEMÓRIAS DE UMA AGULHA DE CROCHÊ E OUTRAS MEMÓRIAS (DETALHES)
2014
Agulha de crochê e grafite sobre papel
Políptico: 384 desenhos, 8 x 8 cm (cada)









EX-VOTO
2015
Agulha de crochê e grafite sobre papel
41 x 11 cm
OFERENDA
2015
Agulha de crochê e grafite sobre papel
62 x 47 cm





Preciosista, a série Memórias de uma agulha de crochê e outras memórias começa com um mosaico composto por 384 desenhos, medindo 8 x 8 cm cada. Primeiro as linhas marcadas em sulcos pela força da agulha sobre o papel; em seguida grafites de durezas e espessuras diferentes na elaboração de volumes e texturas. Desenhos que seriam expostos apenas no ano de 2015, na Galeria Arte Plural, no Recife. “São desenhos feitos com intervenções da agulha de crochê de Dona Maria, uma agulha carregada de muitas histórias, e com o grafite que realça as marcas profundas no papel.”














RECIFE.NOV.2025
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  RENATO VALLE & BRUNO ALBERTIM  
    RELIGIOSIDADE E POLÍTICA      

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