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RECIFE.NOV.2025
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Do gesto-
  monumento  












Não é apenas matéria visual. A arte de Renato Valle, desde sua gênese mais íntima, se faz de desejos de transformação do corpo social no qual está inserido. Nela, sua vontade de potência se evidencia, sobretudo, no trato da figura humana e dos objetos que lhe são tão pessoais como, em simultâneo contínuo, espirituais. Ao explorar a própria subjetividade, sua obra, tão mais política seja, torna-se mais essencialmente religiosa. É na recorrência de elementos caros ao Cristianismo (cruzes, ex-votos, crucifixos), que a materialização de seus embates sobre a multiplicidade do sofrimento humano se articula. Uma religiosidade e espiritualidade imbricadas na crescente desumanização das práticas cotidianas, tensionando o desejo do artista em agir no corpo coletivo ancorado no conceito de humanidade. Para Valle, o religioso jamais será meramente metafísico.













CRISTOS E ANTICRISTOS 2010 - 2012
Fotografias


A inversão da escala no desenho, ou seja, a adoção do grafite monumentalizado em grandes superfícies, se dá na tentativa de conferir escala adequada à complexidade das situações plasticamente trabalhadas. Emerge quando Renato Valle, logo após a repercussão dos cinco mil desenhos da série Diário de votos e ex-votos, é convidado pelo Instituto de Arte Contemporânea (IAC/UFPE) da Universidade Federal de Pernambuco, para o projeto de residência artística intitulado O artista, o processo criativo e a mediação cultural. Ali, Valle amplia o gesto para não mais encurtá-lo. Diante e mesmo em parceria com o público, realiza desenhos em grandes escalas - obras de enorme tensionamento das questões mais caras à sua espessura poética.







Quando o IAC me convidou para a terceira edição de um projeto experimental, desenvolvido na gestão de Ana Lisboa, não sabia o que fazer. Aceitei, já que era experimental, melhor que surgisse algo de dentro do próprio IAC. Visitava o local, pensava, refletia... Fechava os olhos e só via as experiências do Diário, os cinco mil desenhos me deixaram viciados




PROJETO DIÁLOGOS 2005-2006
IAC - Instituto de Arte Contemporânea da UFPE
Recife-PE


Decidi então radicalizar, fazer algo que provocasse em mim uma mudança de comportamento diante do suporte e dos materiais. Pensei em papel em grande formato, mas teria que mandar buscar fora. Além disso, a maior largura era de 150 cm, rolo de papel. Queria algo maior. Pensei então na lona que uso nas pinturas, até 212 cm, em algodão cru

Comecei, aí, a experimentar. Sem temas prévios, em cerca de um mês no Instituto, vi uma tela grande de Balthazar da Câmara, uma pintura a óleo na qual uma mulher segurando um livro estava representada. Adorei a figura daquela senhora, e não gostei nada da paisagem. ‘Entrei’ na obra e comecei a repensá-la! O que deveria fazer diante do que gosto e do que não gosto?


PROJETO DIÁLOGOS 2006
MAMAM – Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães
Recife-PE



PROJETO DIÁLOGOS 2008 - 2009
Movimento Pró-Criança
Jaboatão dos Guararapes



Comuniquei a Ana que queria desenvolver uma série que dialogasse com o acervo do IAC. Com o tempo, esse acervo se ampliou para além das imagens. Passei a dialogar com as histórias contadas por funcionários, pessoas que trabalhavam lá, que por sua vez ouviram de outros. Também, como forma de provocar um comportamento novo, para mim, diante dos materiais que decidi utilizar

Com o tempo, e com o projeto se desdobrando para outras instituições, comecei a ocupar as paredes com as lonas, nem sempre sabendo o que seria usado como referência. O que Marcelo Silveira chamou a atenção por ser mais pertinente a algo não muito próprio ao desenho, mas à instalação




CONVERSA A MUITOS 2010
SPA das Artes





CONVERSA A MUITOS 2010
Grafite sobre lona crua
210 x 430 cm







Desde o ano de 2003, o Instituto de Arte Contemporânea da UFPE, sob a direção de Ana Lisboa, realizava o programa. Uma iniciativa de aproximar o público da arte para além da obra posta em exibição, descortinando o processo criativo do silêncio mitificado e misterioso dos ateliês. Valle é o terceiro artista a participar.










PROJETO DIÁLOGOS 2005 - 2006
IAC - Instituto de Arte Contemporânea da UFPE
Recife-PE







DEPOIS DO APOCALIPSE DE SAMICO 2005
Grafite sobre lona crua
263 x 211 cm











A obra Sinhá Ricarda (2006, outro grafite sobre lona crua, 3,04 x 2,11 m) é mais uma figura feminina. Desta feita, sugerida por densidades diferentes do grafite em golpes rápidos sobre a lona que por contornos - uma figura inacabada, cujas formas imprecisas confundem-se com a disformidade de suas angústias e espiritualidade.









AS SOMBRAS SÃO DE ANA LU 2007
Grafite sobre lona crua
282 x 212 cm






Entre exercícios da filosofia da ação e das formas, há ali potentes comentários silenciosos sobre a sociedade no qual o artista se desenvolve: o Recife senhorial, onde o açúcar histórico viabilizou o projeto colonial português. Uma cidade, como embrião de Brasil, que teve na divisão, a partir da linha de cor da pele, a fronteira de suas populações entre aqueles que sustentam e provam do doce ou do amargo deste açúcar. Se a anterior série de cinco mil pequenos desenhos, elaborados à exaustão, do Diário de votos e ex-votos cumulam sua penitência mais íntima, os gigantescos desenhos em lona da série Diálogos compartilham significados e urgências em agir sobre as fraturas político-existenciais do cotidiano. Cotidiano cuja materialidade é ainda elaborada por reminiscências contínuas deste passado historicamente açucarado.








CRIANÇA SENTADA, SOB O IMPACTO DE UMA DETERMINADA PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA INFANTIL 2006
Grafite sobre lona crua
365 x 424 cm















DEPOIS DO EPÍLOGO DE BALTHAZAR DA CÂMARA 2005
Grafite sobre lona crua
263 x 211 cm















PROJETO DIÁLOGOS 2005 - 2006
IAC - Instituto de Arte Contemporânea da UFPE
Recife-PE



SINHÁ RICARDA 2006
Grafite sobre lona crua
304 x 211 cm














CACHORRO MORTO 2009
Grafite sobre lona crua
212 x 405 cm






Ponto de grande tensão em sua trajetória, o artista incorpora, como estratégia discursiva, figuras infantis para evidenciar distorções sociais. Em mórbida metafísica, a série Diálogos complexifica-se em figuras de crianças adultizadas, corporificadas como bonecos grotescos, imobilizados pelas tensões que os cercam. A beleza essencializada da infância, paradigma de pureza, distorcida no grotesco social. Como resultado da equação, vem o horror e uma estranha ternura por essas crianças transfiguradas que se destacam, diante de desenhos de temáticas diversas.




É exemplar desta lavra Criança sentada, sob o impacto de uma determinada programação televisiva infantil (2006), um desenho cuja escala (3,65 x 4,24 m) potencializa em metáfora a candura das dobrinhas do corpo infantil, sua pele casta e acetinada sob uma cabeça agigantada em perturbação. Pelo excesso de informação midiática contemporânea, um corpo infantil e a subjetividade que dele se projeta como que deformado pelo que é. Desenho, aliás, inspirado numa série, formal e cronologicamente distante, do paulistano Nelson Leirner, Trabalhos feitos em cadeira de balanço assistindo televisão (1997).











CRIANÇA SENTADA, SOB O IMPACTO DE UMA DETERMINADA PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA INFANTIL 2006
Grafite sobre lona crua
365 x 424 cm









A filha da Monga (2005) é outra criança exemplar desta poética: trata da história de uma criança nascida sem vida e com o corpo coberto de pelos. Comovido com a história de que foi exposta, embalsamada, pelo pai, em troca de dinheiro, Valle apresenta sua frágil compleição física quase que coberta totalmente por faixas, numa leveza sugerida pela estratégia da suspensão do corpo na gigantesca superfície planar de mais de quatro metros de comprimento. Seu rosto peludo, tratado em densidades diferentes do grafite, emerge do embalsamento do resto de corpo, sugerindo a resistência da humanidade da criança rechonchudamente cândida e mórbida. Uma existência, aliás, que lhe passara a morar nas inquietações desde que o amigo artista Maurício Castro lhe contara a história de um homem que tinha por hábito exibir, como espetáculo pago, a mulher cujo corpo havia se desenvolvido, por especificidades genéticas, coberto de pelos. Ao ter a filha natimorta com as mesmas características, adotou o mesmo perverso expediente.





A FILHA DA MONGA (EM EXPOSIÇÃO) Religiosidade e política na obra de Renato Valle
2017, Galeria Janete Costa, Recife-PE







A FILHA DA MONGA 2005
Grafite sobre lona crua
211 x 450 cm 









A dicotomia horror e encantamento é flagrante em outros retratos da infância, desenvolvidos posteriormente, já fora do contexto de Diálogos. MMA BABY (3,02 por 2,08 m, 2016) traz duas figuras de bonecos-bebês em duelo - longe de uma crítica ao esporte, uma percepção à cultura da violência na infância.






MMA BABY 2016
Grafite sobre lona crua
302 x 208 cm









ATADO 2020
Grafite sobre lona crua
235 x 100 cm










METAMORFOSE 2007
Grafite sobre lona crua
212 x 410 cm








Em 2012, Renato Valle dá corpo ao desejo de experimentar a tridimensionalidade. Após uma trajetória consolidada em linguagens como desenho, pintura e gravura, o artista passa a materializar sua investigação em esculturas e objetos.








SUPORTES TRIDIMENSIONAIS - PESQUISA 2010 - 2012
Ateliê 7 / CAC – Centro de Artes e Comunicação da UFPE






ANTICRISTOS DE BARRO I (MODELAGEM) 2011

É nesse contexto que surge a série Cristos e Anticristos, composta por 29 obras que dialogam entre si como engrenagens polissêmicas de um maquinário espiritual. Uma maquinaria na qual o cristianismo se entrelaça com a religiosidade própria do artista. Na adoção da tridimensionalidade, Renato Valle reencontra a fé como matéria plástica. As figuras humanas que antes habitavam o papel e a tela emergem agora do poliuretano e da resina - como se o artista lhes insuflasse o sopro do Espírito. A devoção aqui, de novo, é inquieta. Feita de prece crítica.








Em Cristo e Anticristo Coca-Cola, o artista encerra latas do refrigerante dentro de cruzes transparentes – relíquias profanas, bolhas de gás e poder, onde o líquido escuro pulsa (como sangue e capital). O gesto é de ironia e revelação: a mercadoria convertida em sacramento, o sagrado mergulhado na química da indústria. O altar é espelho de um mundo que adora seus próprios deuses de consumo.


CRISTO E ANTICRISTO COCA-COLA (EXECUÇÃO) 2010 - 2011








CRISTO E ANTICRISTO COCA-COLA I e II
2010 - 2011
Escultura - Resina de poliéster e Coca-Cola
56 x 83 x 12 cm







Quando o Cristo se desprende da cruz, a matéria ganha movimento. A figura que antes padecia, agora dança, salta, mergulha. Nas obras Colmeia, Equilibristas e Nado sincronizado, Valle celebra o corpo liberto, o divino que respira leveza. Há humor no sagrado, e mesmo um erotismo sutil na redenção. Em barro ou resina, o Cristo é homem inteiro – com falo, desejo e ferida.





Essas reflexões que se desdobram em colmeias, grades, cruzes com Coca-Cola, enfim, diversas configurações de Cristos e Anticristos, de luzes e sombras que habitam o ser humano, caracterizado como bom ou mau pelas escolhas que faz entre essas forças, e não pela ilusão de achar que possui só bondade, enquanto a maldade está noutro lugar, ou alguém, fora dele





Em Cristo Flagelado, o corpo transparente reluz vitral que sangra luz. Assim, o artista faz do sofrimento uma metáfora de renascimento. O símbolo da morte é convertido em dança e o peso da cruz, impulso de vida.

A contundência civilizatória dos símbolos do Cristianismo é ali reformulada em arranjos de cruzes e Cristos: ora um Cristo branco, ora um Cristo negro; ora ainda, como antes dito, um Cristo retirado da cruz, suspenso e autônomo, que convida o público a refletir sobre as camadas histórico-sociais que moldaram a fé. Nos termos do artista:







CRISTO FLAGELADO 2010 - 2011
Objeto - Resina de poliéster, resina epóxi e cobre
54 x 23 x 15 cm


A ideia era discutir o ‘tipo físico’ de Jesus, pois o tipo europeu que costumamos ver é bastante questionável. Colocar o Preto e o Branco lado a lado, inverter a posição, o positivo e o negativo, o que é cristão e o que não é cristão (não pela cor, mas pela inversão da imagem), trabalhar, enfim, com os símbolos dando outros significados e, em alguns casos, criticando os que são usados para dominação





CRISTOS E ANTICRISTOS 2010 - 2012
Fotografia





COLMEIA 2010 - 2012
Instalação - Resina de poliéster
Dimensão variada











NADO SINCRONIZADO I – BRANCO 2011
Objeto - Resina de poliéster
22,5 x 22,5 cm


NADO SINCRONIZADO II – BRANCO 2011
Objeto - Resina de poliéster
18,5 x 18,5 cm


CRISTOS EQUILIBRISTAS – PRETOS 2011
Objeto - Resina de poliéster
23,5 x 16,5 cm






CANCAN – PRETOS 2012
Objeto - Resina de poliéster
25 x 53 cm







O humor pop, traço recorrente na obra de Valle, desloca a rigidez da imagem sacra para o terreno do humano. Suas pequenas esculturas neoconcretistas de Jesus, alternadas em preto e branco, compõem grades – metáfora de uma ambiguidade essencial: aquilo que protege também aprisiona. O que guarda também condena. A grade torna-se, assim, interseção simbólica entre religião, política, crime e encarceramento. Como observa a crítica de arte Clarissa Diniz, em texto para uma exposição na cidade pernambucana de Garanhuns (2012), os múltiplos deslocamentos, operados pelo artista, da imagem crucial do Cristianismo, descortinam suas polissemias:



Apropriando-se de uma certa lógica pop pela utilização de imagens estereotipadas de Cristo, bem como por sua reprodução e multiplicação, Renato Valle procede em direções complementares: num sentido, anseia desmistificar o personagem Cristo, “humanizando-o” e, assim, desautorizando-o como figura de poder para, por outro lado, retomá-lo como um “homem qualquer”, ainda que singular; por outro lado, termina por criticar a própria concepção desse personagem, denunciando o esvaziamento de sua história e “ensinamentos” promovido pela hierarquização religiosa e consequente comodificação, o que ocorre para sua total desumanização.









HOMENAGEM A MONDRIAN I 2011
Objeto - Alumínio sobre Duratex com veludo
19 x 19 cm (cada)




HOMENAGEM A MONDRIAN II 2011
Objeto - Resina sobre Duratex com veludo
19 x 19 cm (cada)


















CORAÇÕES 2012
Objeto – Resina
24,5 x 20,2 cm



CRISTOS E ANTICRISTOS PRIMITIVOS 2010 - 2011
Objeto - Resina e areia
60 x 50cm



MEDALHINHAS 2012
Objeto – Resina
14 x 14,4 cm






Desde o título da série, as variações de Cristos e Anticristos evocam contrastes entre luz e sombra, amor e ódio, fé e descrença, apontando a dualidade constitutiva das instituições ocidentais. Mais do que oposições binárias, Valle expõe o mecanismo de exclusão de um polo em favor do outro – exclusão que sustenta a lógica do Cristianismo ocidental. Ao problematizar a figura de Cristo e a institucionalização religiosa, Valle humaniza e critica simultaneamente seus ícones, denunciando a mercantilização e desumanização promovidas por estruturas de poder, ao mesmo tempo em que consolida o desenho como território de experimentação estética e resistência política, mostrando que a arte pode ser um projeto de vida inteira.

Nos arranjos da série, antes que meros experimentos plásticos, inquietações se multiplicam em formas (a citada Colmeia, a Grade ou cruzes de resina cristalizada, erguidas sobre colunas de latas de Coca-Cola). Tal expediente dialoga, por exemplo, com procedimentos de uma pop arte brasileira (Cildo Meireles e Nelson Leirner, como vetores confessos), flagrando a disposição da sociedade de consumo em sacralizar o mundano ou, inversamente, transformar o sagrado em mercadoria industrial.








BRANCO NO BRANCO, BRANCO NO PRETO, PRETO NO PRETO E PRETO NO BRANCO 2011
Objeto - Resina sobre Duratex com veludo
49 x 50,5 cm






PRETO NO PRETO, PRETO NO BRANCO, BRANCO NO BRANCO E BRANCO NO PRETO
2011
Objeto - Resina sobre Duratex com veludo
50 x 54 cm






GRADE BRANCA II 2012
Objeto - Resina de poliéster
45 x 63 cm




GRADE PRETA I 2012
Objeto - Resina de poliéster
62,5 x 44,5 cm
(detalhe)






Nesse mesmo registro crítico, sem abrir mão do humor dos paradoxos, uma pequena escultura de parede traz a cabeça de Cristo em resina. No alto da calota craniana da figura, uma fenda permite inserir moedas e cédulas: o Cristo-Mealheiro que denuncia, de forma direta, a indústria da fé. No ano de 2017, por exemplo, o mealheiro aparecia na imagem do Jesus pregado na cruz em chrimassa, material que dá à peça grande verossimilhança com certas formas rudimentares do crucifixo, como artefato da fé popular.

De volta à linguagem da pintura, em óleos sobre telas em que crucifixos pintados sobre mesas cobertas com toalhas colhidas ou bordadas, numa sugestão de intimidade e afeto doméstico, figuram abaixo de mãos que lhe depositam cédulas em fendas. Em fina ironia, o gesto aparece em telas diferentes, ambas realizadas entre 2018 e 2019. No quadro denominado Mealheiro 1 (Fé de menos), a cédula depositada na fenda equivale a R$ 2,00 – valor com o qual se comprava pouco mais de um pão no ano da execução da obra. Na denominada Mealheiro 2 (Fé de mais) figura uma cédula de R$ 100,00. Em ampliação de sentidos, telas e respectivos títulos nos informam haver, assim, equação diretamente proporcional entre investimento fiduciário e fé pessoal.
MEALHEIRO 1 2017
Chrimassa
39 x 27 x 10 cm



MEALHEIRO 2 2017
Chrimassa
19,5 x 15 x 6,5 cm





MEALHEIRO 5 2017
Chrimassa
27 x 17 x 8 cm

Em texto intitulado As Escolhas de Renato Valle (2012), a artista e professora Bete Gouveia ressalta a dedicação do artista no trato da forma com ênfase em ressaltar uma função essencializada que tal forma encerraria. Segundo a qual, neste sentido: “no objeto de arte, a forma de um objeto prosaico se desenvolve segundo princípios internos, independentemente do seu conteúdo simbólico e função, como se a forma fosse dotada de um espírito próprio e possuísse uma motivação artística íntima”.

Em obras da série Cristos e Anticristos e nos Mealheiro 1 e Mealheiro 2, haveria, assim, um preciosismo no tratamento das formas no sentido de conferir aos objetos verossimilhança em relação à configuração natural, nos informando a relação intrínseca entre forma e função. Sublinha Gouveia:





Mesmo que a evidente intenção do artista tenha sido a de perseguir conceitos vinculados a aspectos da cultura popular, ou ainda em torno de motivações afetivas, vivenciais e críticas em relação à fé religiosa e à essência das coisas, como é o caso dessas obras supracitadas, há nelas um caminho vasto no sentido da interpretabilidade.







MEALHEIRO 2011
Objeto - Resina de poliéster e dinheiro
35,5 x 27,5 x 15 cm






Ao longo da série Cristos e Anticristos, Valle recorre a situações-limite da subjetividade – a sua e a dos que o cercam – para evocar a dimensão da fé em territórios inevitavelmente políticos:


Há nessas ideias uma negação clara tanto da representação europeia do Cristo quanto da sua imagem, morto e ensanguentado na cruz, como expressão do Cristianismo. A cruz, assim como a guilhotina, a forca e as fogueiras, fala da crueldade humana: são instrumentos de punição, não de fraternidade ou compaixão. E, na maioria das suas representações tradicionais, ainda aparece como madeira polida, bem-acabada, como se fosse destinada ao repouso de um rei branco de olhos azuis – e não ao suplício de um bandido



MEALHEIRO 1 (FÉ DE MENOS) 2018 - 2019
Óleo sobre tela
30 x 30 cm

MEALHEIRO 2 (FÉ DE MAIS) 2018 - 2019
Óleo sobre tela
30 x 30 cm





Se em 2012, quando apresentada pela primeira vez ao público, após residência, no Centro de Artes e Comunicação (CAC), da Universidade Federal de Pernambuco, a série Cristos e Anticristos provocou reflexões a partir de debates, em 2022, quando exposta em Porto Alegre, catalisou a violência de parte mais radical de instituições neopentecostais da capital gaúcha. Autointitulados pastores, alguns homens filmaram recortes da exposição sobre aspectos da relação entre fé e política na obra de Renato Valle, sob curadoria de Lilian Mauss, em um importante centro cultural da cidade.

Desprezando trabalhos menos óbvios nesse sentido, focaram nas imagens de cruzes e cristos em arranjos além da representação clássica ocidental. Sob a acusação de satanismo e outras heresias, incitaram, pelas redes digitais, ataques à exposição. Para não apenas manter as obras a salvo, como evitar maior publicidade para o grupo fundamentalista sob o pretexto de seu trabalho, Renato resolve encerrar a exposição quatro dias antes do previsto – quando se deu a mobilização de uma live coletiva em protesto contra a mostra por membros de igrejas locais - algumas das quais, como regra, beneficiárias de isenções fiscais de seus patrimônios, doações e dízimos obrigatórios de fiéis, ou seja, motivos dos comentários críticos na obra do artista.








COLMEIA 2010 - 2012
Instalação - Resina de poliéster
Dimensão variada







Quase três décadas antes, Renato Valle já esboçava, com ironia e contundência, sua crítica à aliança silenciosa entre poder eclesiástico e interesses financeiros. Em Ratos no Mosteiro (1987), o insólito se revela natural: os roedores atravessam corredores e celas religiosas sem que sua presença desperte horror ou estranhamento. Ao contrário, os bichos se integram à cena como parte legítima de um espaço que deveria simbolizar pureza e recolhimento espiritual. A metáfora é incisiva – a sujeira e a ruína tornam-se aceitáveis quando amparadas pela força institucional da Igreja. No mesmo ano, em Depois de Barlach, Valle radicaliza o comentário. Com o traço minucioso do bico de pena e nanquim, compõe uma cena em que sacerdotes e empresários se aproximam em silêncio, envolvidos em acordos invisíveis, mas de efeitos duradouros. O título remete a Ernst Barlach, escultor e desenhista alemão perseguido pelo nazismo, cujo trabalho denunciava a hipocrisia social e a conivência das elites religiosas com regimes autoritários. Valle evoca essa herança crítica para, com seus próprios meios, atualizar a denúncia das cumplicidades entre fé e capital.






RATOS NO MOSTEIRO 1987
Bico de pena
25 x 69 cm






O gesto do artista é duplo e corrosivo: por um lado, expõe o esvaziamento ético das instituições religiosas, revelando o quanto a espiritualidade pode ser pervertida por interesses mundanos; por outro, devolve ao espectador a experiência concreta de perceber a fé como algo que se transaciona, como moeda de troca. Assim, entre moedas, cédulas e até símbolos banais da sociedade de consumo, ergue-se uma narrativa perturbadora: a da mercantilização da crença, mas também a da tensão insolúvel entre ritual e negócio, entre devoção e poder.






DEPOIS DE BARLACH 1987
Bico de pena
25 x 69 cm

 






Entre a espiritualidade e a política, a religiosidade de Valle não se isola em templos ou se acomoda em dogmas; se lança ao mundo em duplo movimento: ético e estético. A insistência é no humano em tempos de desumanização. Há em sua obra uma liturgia própria: feita de repetição, cansaço, devoção e liberdade. Liturgia que se oferece não como promessa de salvação - mas exercício de memória, humanidade e resistência.







CANUDOS, CANECA, DIRETAS... E O BRASIL NÃO MAIS RESISTE E MEALHEIRO (EM EXPOSIÇÃO) Religiosidade e política na obra de Renato Valle
2017, Galeria Janete Costa, Recife-PE















RECIFE.NOV.2025
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  RENATO VALLE & BRUNO ALBERTIM  
    RELIGIOSIDADE E POLÍTICA      

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