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RECIFE.NOV.2025
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③
Bandido
bom é
bandido
exposto
A corda no pescoço seria desnecessária. Mais um adorno de intimidação, um elogio têxtil à tortura, que propriamente um instrumento para evitar qualquer tentativa de fuga. Francisco caminhava pelas ruas da pequena cidade de Pilar, hoje um município integrado à Região Metropolitana de Maceió, Alagoas, preso por uma corrente e cercado por carrascos. Na verdade, homens também escravizados que tiveram suas próprias penas de morte comutadas pelo serviço involuntário de executar seus pares. Condenado com base na lei imperial de 1835, inflexão legal determinante do óbito aos cativos que ferissem ou matassem seus proprietários, familiares ou atentassem severamente contra a ordem geral das coisas, Francisco seria enforcado em 28 de abril de 1876. Depois de um processo judicial arrastado por quase dois anos sem direito a recursos, era o último homem, oficialmente, condenado à morte no Brasil.
O ESCRAVO FRANCISCO
2021
Grafite sobre papel
26 x 16 cm
Francisco foi sentenciado pela acusação de matar o Capitão da Guarda Nacional - João Evangelista de Souza havia sido atacado quando se encontrava desprevenido no Hotel Central de Pilar e, antes que tomasse consciência de sua condição de viúva recente, a esposa seria também morta, horas em seguida, no sítio onde o casal vivera na zona rural do município. O próprio imperador negou os recursos pela comutação da pena: Dom Pedro II não apenas determinou a execução sumária de Francisco, como indicou que a sentença se desse da maneira pedagogicamente espetacular prevista para as penas capitais.
A cidadezinha de mais de 13 mil habitantes não vira antes aglomeração tão grande: cerca de duas mil pessoas aguardavam diante dos mastros onde a forca esperava o réu. Na plateia, senhores de engenhos e escravocratas urbanos levaram seus cativos, ordenados, para assistir a Francisco ter sua laringe bloqueada e esmigalhada no golpe em que, pescoço quebrado, seu corpo ficaria flutuante por uma corda.
Para a nem tão pequena audiência, era um espetáculo. Às avessas, mas um espetáculo. Conduzindo o cortejo, membros da Guarda Nacional em marcha coreografada. De cada lado da comitiva, um padre em bênçãos. Com calculada afetação teatral, um juiz lia e relia a sentença para o réu e o público.
A ANÔNIMA DA MONGÓLIA
2021
Bico de pena sobre papel
16,5 x 20 cm
O caráter espetacular seria tão importante quanto a aplicação jurídica da pena em si: uma forma didática e exemplar de informar aos brasileiros de ascendência africana e a seus descendentes, aos negros capturados diretamente em África ou aos brancos livres e pobres, o que lhes aconteceria caso, como ocorrera na república caribenha do Haiti, a população afrodescendente decidisse eliminar na foice a elite agrária, branca e escravista. Na Bahia, em São Paulo ou Minas Gerais, escravizados haviam atacado senhores, informando não mais aceitar jornadas excessivas, castigos cruéis ou a separação de seus familiares ao serem vendidos para outros proprietários.
No ano de 1833, em São Thomé das Letras, Sul de Minas, africanos e afrodescendentes haviam promovido um levante de justiçamento contra famílias de latifundiários escravocratas da região. Fresca pelas décadas seguintes na memória da elite agrária e política, a chamada Revolta de Carrancas seria usada como justificativa para a implementação da pena capital – embora o dispositivo e as disposições sobre a vida alheia e negra, como consequências mais evidentes das torturas sistemáticas impostas à população escravizada, fossem já uma realidade mais que prática.
BRANDON BERNARD
2021
Tinta PVA
sobre papel
19 x 28 cm
Com o fim oficial da escravidão em 1888, a lei de pena de morte seria também oficialmente revogada no Brasil – confirmando o caráter racial de sua natureza (embora houvesse a previsão da pena capital para pessoas livres, condenadas por homicídio e de quaisquer cores, não consta que brancos tenham sido efetiva e legalmente executados no Brasil imperial). Com o fim da lei, o Brasil jamais perderia, contudo, seu pendor pelas execuções – apesar da sua religiosidade cristã e expressamente contrária a qualquer direito de alguém decidir sobre o fim da vida de outrem. O Brasil morre e mata. Muito e com frequência.
No ano de 2022, o artista Renato Valle investe-se de um expediente mais classicamente associado ao jornalismo ou à historiografia. Realiza uma série de desenhos – técnicas e dimensões variadas, do grafite, lápis de cor, tinta PVA, pastel, óleo, bico de pena sobre papel, do nanquim aos sulcos obtidos com a velha agulha materna de crochê, a partir da análise minuciosa de casos exemplares de penas de morte autorizadas, sempre pelo Estado ou ordenadas pelo poder constituído. Como faturas das obras, cores sóbrias, sombrias, um figurativismo precioso em serviço das especificidades dos personagens em seus episódios de morte. Execuções legais, realizadas em países e tempos diversos. Determinadas por Estados legais, algumas com o acréscimo das justificativas religiosas. Mais de um século depois de sua solvência oficial no Brasil, a pena de morte é objeto na poética do artista.
BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO (CAPA)
2021 - 2022
Revista ilustrada - 58 páginas
28 x 21 cm
Curioso notar a dinâmica: em vez de desenhos para paredes ou galerias posteriormente agrupados numa publicação, uma série de obras, desde a concepção, pensadas para serem publicadas e reunidas, em formato de revista. Um formato híbrido entre a crônica jornalística e a arte. Poética reforçada pelo agrupamento serial, um conjunto de desenhos sobre execuções ideais, prototípicas - de fato exemplares. Mesmo quando não realizadas diante de plateia, mortes legais - e espetaculares - pela capacidade de mobilização da atenção e do debate públicos. O nome da série/revista: Bandido bom é bandido morto. Uma ampla alegoria do desejo atemporal, independente dos mecanismos formais da lei, de povos distintos pelas execuções de pessoas tidas como marginais - subpessoas, portanto. Em todas elas, ressalta-se o viés de espetáculo às avessas. Mortes exemplares em momentos que podem ser considerados, em maior ou menor grau, vetores da história.
LORCA
2021
Grafite e nanquim sobre papel
15 x 21 cm
Um dos executados na série é o jovem americano George Junius Stinney retratado por Valle num díptico de vermelho ao fundo das duas partes. Uma em que o jovem aparece já executado, o rosto inerte, inchado para além do capacete e da máscara de silenciamento, usados durante a eletrocussão. Na outra, George figura ainda vivo, expressão serena, porém atenta, em camisa azul de gola branca. Com o vermelho da parede de fundo, um tríduo cromático alusivo às cores da bandeira norte-americana. A metáfora das cores é clara sobre o dispositivo estatal acionado para aquela morte. Reforçando o expediente jornalístico, o próprio artista tece comentários informativos a partir de cada obra na revista de arte. Sobre George, Renato discorre:
“No dia 16 de junho de 1944, aos 14 anos de idade, George Junius Stinney, caminhou até a cadeira elétrica segurando sua inseparável Bíblia. Jurou inocência até o último momento de sua existência, no Estado da Carolina do Sul – EUA, onde nasceu. O adolescente negro foi acusado de assassinar duas garotas brancas com uma barra de ferro que pesava cerca de 10 kg, cerca de ¼ de seu peso. A suspeita veio do fato de ele ter sido visto com sua irmã, em frente à casa onde morava, prestando informações às duas meninas que passavam de bicicleta, procurando flores”
GEORGE JUNIUS STINNEY
2021
PVA, nanquim e lápis de cor sobre papel
Díptico: 25,5 x 41,5 cm (conjunto)
“Todas as circunstâncias do episódio deveriam inocentá-lo, mas em um ambiente segregado, interrogado por policiais brancos, em uma sala trancada e sem testemunha, posteriormente defendido por um advogado indicado pelo Estado, o qual não contestou as acusações nem convocou as testemunhas, o jovem foi condenado à pena de morte. Houve relatos de que o carrasco teve que colocar um suporte, um livro ou lista telefônica na cadeira, pois era um jovem com pouco mais de um metro e quarenta e pesava pouco mais de 40 kg; foram três longas descargas elétricas, e sua máscara caiu algumas vezes, revelando dor, choro e salivação. Em 2014, 70 anos após a sua morte, o caso foi revisto e a sentença anulada”
A série nasce da necessidade do artista em manifestar verbal e explicitamente um conjunto de opiniões, algo raro em sua trajetória, cujos argumentos ficam quase sempre latentes no ordenamento imagético das obras. Bandido bom é bandido morto, a série é um raro momento em que o artista ilustra suas obras com palavras. Vez por outra, Renato havia sido enfático, seja em formato de vídeos em postagens nas redes sociais, em textos publicados em artigos de jornais. Mas verbalizar opiniões em sintonia com séries de obras acontece mais raramente.
EDITH CAVELL
2021
Agulha de crochê, grafite e bico de pena sobre papel
Díptico: 26 x 42 cm (conjunto)
A estratégia para circulação das obras merece também atenção. Em vez de apenas esperar o público de uma galeria ou museu, o artista assume maior agência, enviando metade da tiragem de dois mil exemplares pelos Correios, para alcançar também tanto lideranças políticas como religiosas, além de jornalistas e formadores de opinião. O próprio Valle também listou alguns dos mais conservadores, pessoas sabidamente favoráveis às execuções, para receberem preferencialmente exemplares da revista.
A série está repleta de mortes exemplares. Motivo de um díptico em agulha de crochê, grafite e bico de pena sobre papel, há também, noutro exemplo, o desenho sobre a enfermeira inglesa Edith Cavell. Numa das páginas, Edith aparece quase de perfil, enquadrada a partir do busto. O brocado da blusa, a gravata e o coque arrumado sobre os cabelos penteados com zelo denotam elegância e firmeza de caráter. Na outra, um fuzil e um capacete alemão da Primeira Guerra Mundial estão suspensos no ar, sobre uma caveira sugerida ao fundo do desenho em grafite. Simbolizam seus carrascos e execução.
Reconhecida publicamente como enfermeira na Inglaterra, Edith foi promovida a educadora e gerente no Hospital Escola da Bélgica, sob controle da Cruz Vermelha. Além de salvar vidas durante a Primeira Guerra Mundial, ajudou belgas, ingleses e britânicos a deixarem o país, então ocupado pelas tropas alemãs. Apesar da grande campanha internacional em sua clemência, Edith Cavell foi executada a tiros. Morta em Bruxelas, no dia 12 de outubro de 1915. A prova alegada para sua condenação: um bilhete de agradecimento enviado por um dos refugiados.
OLGA BENÁRIO PRESTES
2021
Grafite sobre papel
Tríptico: 18,5 x 40 cm (conjunto)
Na série, aparece também a judia de origem alemã Olga Gutmann Benário Prestes. Deportada aos sete meses de gravidez pelo governo de Getúlio Vargas para a Alemanha nazista onde, após dar à luz a filha Anita Leocádia Prestes num campo de concentração, a comunista é asfixiada numa câmara de gás no ano de 1942. Olga torna-se a executada política mais conhecida da história política do Brasil no século 20. “Difícil alguém normal achar que tudo isso foi normal”, comenta o artista, na página da revista relativa à obra. Àquele momento histórico, percebe Valle, gestos de salvação humanística estiveram além das religiões declaradas - e muitas vezes, em desencontro com as crenças estabelecidas.
“Lembro que, em ‘A Arte da Vida’, Zygmunt Baumann conta que foi feita uma pesquisa na Polônia pós-guerra, sobre as pessoas que abrigaram e protegeram judeus em suas casas, pondo em risco suas vidas e a dos seus familiares e as que não abrigaram nem protegeram judeus, evitando os riscos. O perfil de ambos os grupos é o mesmo: nem um nem outro pertenciam a um determinado segmento religioso. Podiam ser católicos, protestantes, ou sem religião. Os que acolheram e salvaram, fizeram pelo simples fato de que não conseguiriam viver sabendo que poderiam ter salvado vidas e não o fizeram; os que não fizeram justificaram o não envolvimento com a própria proteção e a dos seus familiares”
TIRADENTES
2021
Grafite e nanquim sobre papel
28 x 20 cm
O conjunto de figuras é vasto. De personagens mais anônimos a mais célebres. Aparecem também uma versão de Tiradentes esquartejado; de Zumbi dos Palmares com a cabeça flutuando sobre uma representação da Basílica e Convento de Nossa Senhora do Carmo, no Centro do Recife; e do próprio escravo Francisco – retratado por trás, enforcado diante de uma aglomeração de poucos senhores e muitos escravizados, na cidade alagoana de Pilar, sob a celebridade de ter sido o último executado pela antiga lei marcial do Brasil imperial.
ZUMBI DOS PALMARES
2021
Grafite, tinta PVA, nanquim e lápis de cor sobre papel
21 x 21 cm
Pela popularidade da cena, um dos pontos de destaque na série é a mais comentada execução da história ocidental. Em bico de pena e grafite, ao lado dos dois “ladrões” que lhe acompanharam na ação sumária, está um Jesus Cristo na cruz. O nome da obra: Os três condenados (2021). No desenho, Cristo é delineado diferentemente da representação mais clássica da crucificação pela literatura católica.
OS TRÊS CONDENADOS
2021
Tinta PVA, nanquim e bico de pena
sobre papel
18,5 x 23 cm
“As representações cristãs da crucificação comumente colocam o Cristo em cruz polida, limpa, com um apoio cuidadosamente colocado para os pés, como se, para pregá-los, não precisassem quebrar os seus ossos. Uma representação assim conduz muita gente a uma aceitação brutal dessa condenação, enquanto, diante de um dos métodos mais cruéis de tortura e morte, deveríamos sentir repulsa e indignação. Essa reflexão me fez representá-lo em uma cruz tosca e colocá-lo abaixo dos outros dois condenados, uma vez que, sendo Ele considerado um ‘bandido mais perigoso’, certamente foi mais humilhado e torturado”
A representação de Cristo elege, de forma um pouco mais cristalina que as demais, a contradição essencial que move Valle na série Bandido bom é bandido morto. Para o artista, está patente a incongruência civilizatória no fato de que a esmagadora maioria da população brasileira se alegar francamente adepta do Cristianismo, esteado no amor ao próximo e no mandamento “Não matarás teu semelhante” e, igualmente, sem paradoxo percebido, declarar-se a favor da pena de morte. Uma anomia flagrante.
Durante as pesquisas para sua revista, Renato Valle depara-se com os resultados de uma pesquisa, de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A investigação informava que 60% da população brasileira acredita, de pestanas tranquilas, na premissa de que “bandido bom é bandido morto”. Mais da metade dos brasileiros, portanto, é favorável à pena de morte. Acredita, portanto, que bandido bom não é apenas bandido morto, mas bandido executado. Eis a população de um país forçosamente católico desde seu berçário, tendo a Igreja Católica Apostólica Romana como respaldo ideológico. Não apenas respaldo, mas beneficiária direta: quando os religiosos emanciparam seus escravizados, em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil pessoas subjugadas neste País em que as Irmandades dos Homens Pretos construíram e/ou doaram muitas igrejas e edifícios e propriedades ao Vaticano.
JOANA D’ARC
2021
Tinta PVA,
lápis de cor
e pastel óleo sobre papel
25 x 21 cm
De matriz católica, em 1970, os chamados crentes representavam ínfimos 5% da população. No censo de 2010, eram já 22%. Publicado em 2025, o Censo 2022 revelava que o catolicismo continua sendo a religião majoritária no Brasil, embora com uma redução em sua participação, enquanto os evangélicos e pessoas sem religião aumentaram suas porcentagens. Especificamente, os católicos diminuíram sua representatividade para 56,7% da população, enquanto os evangélicos alcançaram 26,9%, e os sem religião chegaram a 9,3%. Um país que vai, assim, mudando os tons do seu Cristianismo.
FREI CANECA
2021
Grafite
e lápis de cor
19,5 x 28 cm
Alguns motivos mais evidentes são apontados por uma sociologia das religiões no Brasil para o fenômeno. A crescente presença de grupos e igrejas neopentecostais no comando de empresas de mídia e comunicação, a incapacidade da igreja católica de estar presente em periferias mais recentes e a desburocratização do acesso à fé protestante, por exemplo. Por desburocratização, entenda-se que para se tornar evangélico basta levantar o braço e proclamar a aceitação da fé protestante, não sendo necessário cumprir rituais que vão do catecismo mais demorado ao batismo. Ou, do ponto de vista organizacional, a dispensa de uma autorização, muitas vezes morosa, de uma instituição central como o Vaticano para que uma igreja seja aberta. Neopentecostais podem, a qualquer gesto, converter mínimas garagens ou lojinhas em templos. De maneira autônoma. Em diálogo direto com um Deus que, se na teoria litúrgica prega o amor e ao respeito à vida, não impede, na prática, as políticas do justiçamento cotidiano. A fé não encontra contradição racional com a morte.
OS SEIS MIL CONDENADOS
2021
Tinta PVA
e grafite
sobre papel
20 x 29 cm
O que motiva o artista, portanto, não é a mera constatação de que aparatos legais estatais tenham tido ou ainda tenham o poder decisório sobre o fim da vida a partir de julgamentos, no mais das vezes, proferidos pelo Estado por interesses de classe. Mas a contradição umbilical de que, com a conversão gradual do catolicismo barroco-tropical em neopentecostalismo periférico, o brasileiro se confessa mais ardentemente cristão. Mais bíblico, mais eticamente religioso nas ações ordinárias, mais íntimo da palavra divina e, ainda assim, mais entusiasta da crença de que bandido bom é bandido morto.
Maior nação cristã do mundo, o Brasil, aponta o artista, é a conciliação de éticas opostas. O país da popularização da fé onde emergem, por exemplo, fenômenos como o “narcopentecostalismo” – na mão inversa dos que abandonam o tráfico pelo mecanismo da conversão, comunidades de traficantes autodeclarados neopentecostais. Marginais com Bíblia em mãos como argumento estratégico para ações e domínios de territórios. Para os quais quem infringe as regras de mutualidade e convivência deve ser também executado. Para os que se enquadram na categoria da infração das normas devem ser submetidos à lógica do bandido bom é bandido morto. Uma bíblia na mão, um fuzil na outra.
SALVADOR PUIG ANTICH
2021
Grafite
e lápis de cor sobre papel
21,5 x 19 cm
“Dos aproximadamente oito bilhões de habitantes do nosso planeta, cerca de 1/3 declara pertencer a alguma vertente do Cristianismo. Em termos percentuais, o Brasil é a maior ‘nação-cristã’ do planeta; e os Estados Unidos a segunda”
“Além das mais antigas e tradicionais religiões, o terreno aqui no Brasil tem sido fértil para o surgimento de muitos grupos religiosos com base nas chamadas ‘escrituras sagradas do Cristianismo’”
“O interesse pelo poder temporal, sempre presente em muitas instituições religiosas, costuma distorcer os fundamentos essenciais de qualquer doutrina, seja ela política ou religiosa, abrindo, assim, as portas para abusos, crimes e guerras”
“No Campo individual, o que percebemos é que participar de um grupo religioso, de seus cultos, rituais etc. não confere a quem quer que seja a qualidade de cristão”
“Ser e aparentar podem ser coisas bem distintas. Dessa forma, não é incomum que se busque integrar um grupo visando, sobretudo, o verniz de um status qualquer”
A ESCRAVA ROSA
2021
Grafite
sobre papel
Díptico:
26 x 36 cm
(conjunto)
O artista se debruça sobre um país em franca florescência evangélica. Entre os anos de 2010 e 2017, percebe ele, foram registradas quase setenta mil entidades declaradas como organizações de cunho filosófico ou religioso na Receita Federal. Algo em torno de 25 novas organizações por dia.
“Muitas pessoas buscam pertencer a um determinado grupo não para mobilizar forças e empreender uma ‘renovação interior’, mas para ‘fundamentar’ o que tem de pior dentro de si, através de teorias que os convém, e, no caso das religiões, procuram interpretações e reinterpretações das ‘escrituras sagradas’ de maneira que ‘caibam’ nessas justificativas”
Em sociedades marcadas pela escravidão – caso do Brasil desde logo depois de seu mais tenro batismo – não apenas a desigualdade torna-se estruturante da manutenção histórica de privilégios, como a morte precoce é usada para a destinação tácita de parte massiva da população, uma grande maioria minorizada condenada, antes do suspiro final, a um já perene rito gradual de morte em vida. No mundo inteiro, calcula-se, cerca de 2/3 de todos os habitantes do planeta terra são “descartáveis” - ou seja, pessoas à margem dos sistemas de produção, desimportantes e excluídas tanto como força de trabalho, como agentes de consumo. Servem apenas, no horizonte do capitalismo global do século 21, para tornar ainda mais barata a mão de obra que consegue se integrar por meio de funções precarizadas. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, cerca de 40% da população está abaixo dos níveis minimamente dignos da pirâmide social brasileira.
DANTON
2021
Grafite
e lápis de cor sobre papel
20 x 23,5 cm
“Acredito que boa parte da população sente um forte desejo de explorar o pobre, se esforça para que políticas de inclusão não sejam implementadas. Afinal, para quê dar acesso a uma universidade aos filhos dos que lhes servem? Esses devem permanecer na pobreza para que seus filhos, netos, bisnetos etc. tenham quem lhes sirva! Essa é uma das razões que justificam pregações como ‘Universidade é para poucos’, e, na sequência, o esforço para privatizar as universidades públicas”
“Já em relação aos miseráveis, estes, para essa gente, não devem ser ‘assistidos’, mas sim, eliminados. Arrancam seus cobertores nas ruas, colocam barreiras para dificultar que se abriguem em locais públicos, calçadas com marquises, por exemplo. Independentemente da cor, pobre deve ser explorado e miserável, eliminado. Arrumam presépios dentro de suas casas, mas fora delas querem varrer gente como se fosse lixo. Imaginem Jesus Cristo com seus pais nos dias de hoje, um casal pobre que teve de fazer um parto em uma manjedoura! Qual seria o destino dessa família se dependesse desses falsos cristãos?”
OSIP PIATNITSKI
2021
Grafite
e lápis de cor sobre papel
30 x 20 cm
Os mártires executados da obra de Renato Valle, silenciosamente, corporificam também os rostos anônimos, subpessoalidades, que, sem que se precise gastar uma bala contra eles, acabarão também por serem assassinados por mecanismos discricionários e silenciosos do Estado, em comunhão com uma elite social e financeira interessada em concentrar, desde sempre, as prioridades de uso do orçamento público. Entre os executados da série Bandido bom é bandido morto, há em comum o fato de desrespeitarem os habitus de seus tempos.
Conceito sumarizado pela sociologia do francês Pierre Bourdieu, a ideia de habitus sintetiza o conjunto de disposições prévias para a vida social, esquemas nem sempre conscientes de pensamento, sensibilidade, percepção e ação, apreendidos ao longo das interações e determinantes de escolhas e comportamentos individuais diante da sociedade. Habitus, portanto, é um mecanismo ordenador e disciplinar.
MATA-HARI
2021
Agulha de crochê, grafite e nanquim sobre papel
28,5 x 18,5 cm
Por extensão, essa linha da dignidade pode também distinguir os plenamente humanos dos sub-humanos. Os que não estão integrados ou aptos a internalizar o corpus disciplinador, desenvolvendo, assim, habilidades subjetivas como a capacidade de planejamento, autocontrole e submissão ao ordenamento legal, estarão marginalizados. Olga Benário Prestes e Jesus Cristo ousaram discordar das hegemonias de seus tempos. Tanto pelos assassinatos que cometeu, mas sobretudo por ameaçar a ordem escravista vigente, posto que alguns de seus companheiros não tiveram a forca como destino, o Francisco escravizado e executado na cidade alagoana de Pilar também, mais que homicídios, promoveu a desestabilização dos ordenamentos. Tanto quanto o jovem americano negro: eletrocutado aos 14 anos de idade sob a acusação de um duplo homicídio, pelo qual seria inocentado mais de 70 anos depois, o adolescente George Junius Stinney não teve direito sequer a defesa plena. Em 1944, o fato singelo de ser negro o tornava um corpo alijado dos mecanismos sociais e noções civilizatórias alimentadas pelo habitus como dispositivo de ações em seu tempo.
SOLOMON MIKHOELS
2021
Grafite e tinta PVA
sobre papel
29 x 21 cm
As imagens de Renato Valle parecem subscrever as ideias de Foucault, para quem, desde o século 17, os Estados têm criado mecanismos silenciosos para distinguir, sem precisar recorrer ao cadafalso, os que devem viver dos que não devem viver. Que morram os corpos inúteis por falta de acesso às políticas mínimas de subsistência, estejam eles desintegrados aos sistemas econômicos, ou desobedientes às ideologias vigentes. A falta de acesso permanente às estruturas minimamente necessárias de serviços de saúde e de prevenção a doenças evitáveis (porém letais), de escolaridade que garanta colocação minimamente sustentável para si e seus familiares, de saneamento básico e de noções básicas de equilíbrio garantirão suas mortes precoces. O extermínio é tácito, vala comum, e menos custoso para o erário que disciplinar um sistema de execuções legais.
Mesmo as mortes violentas não precisam, necessariamente, ser diretamente operadas pelas estruturas do Estado. Mas tacitamente consentidas por omissão. Números nos ajudam a raciocinar: O Atlas da Violência 2024, por exemplo, traz os dados de mortes por homicídio no País no ano de 2022. Pela compilação do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA), quarenta e seis mil, quatrocentas e nove pessoas foram assassinadas no Brasil naquele ano. E, como sempre, desde o tempo em que as execuções eram legalmente tipificadas no País, os alvos preferenciais estão baseados na cor da pele. Do total de mortos, 76,5% eram pessoas pretas e pardas. Em Pernambuco, estado do artista, das 117 pessoas mortas em abordagens policiais, 95,7% eram pardas ou negras.
LAVOISIER
2021
Grafite,
bico de pena, lápis de cor
e tinta PVA
sobre papel
21 x 25 cm
Em dimensão ampliada, a obra de Renato Valle amplifica o volume do pensamento de autores como Charles Mills, um dos raros filósofos negros contemporâneos. Autor de O Contrato Racial (1997), o jamaicano dilui o consenso secular, ao discordar da tese geral de que a modernidade teria sido possível apenas pelo contratualismo através dos quais os indivíduos teriam aberto mão de suas liberdades mais privativas em favor de um conjunto restritivo de leis pelos bem e respeito mútuos. “O contrato peculiar a que estou me referindo, embora baseado na tradição de contrato social que tem sido central para a teoria política ocidental, não é um contrato entre todos (‘Nós, o povo’), mas apenas entre as pessoas que contam, as pessoas que realmente são pessoas (‘Nós, os brancos’). Portanto, é um contrato racial” (1997).
Na revisão de Mills, a modernidade é viabilizada historicamente por outro tipo de contrato. Por meio da anexação violenta de colônias e populações, um enorme contrato racial em que a humanidade seria dividida entre os que trotam e os que devem ser cavalgados, a partir da linha de cor da pele. Anexação de povos e territórios, monocultura de plantation e, estruturalmente, escravização de um terço da humanidade fundam esta modernidade. Nos termos do filósofo:
“O que é necessário, em outras palavras, é um reconhecimento de que o racismo (ou, como argumentarei, a supremacia branca global) é, em si, um sistema político, uma estrutura particular de poder para um governo formal ou informal, para o privilégio socioeconômico e para normas de distribuição diferenciada de riquezas materiais e oportunidades, benefícios e responsabilidades, direitos e deveres” (1997).
BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO
2021 - 2022
Revista ilustrada - 58 páginas
28 x 21 cm
A branquitude, como subscreve a antropóloga brasileira - branca e paulistana - Lilian Schwarcz (2024), historicamente, tem atrelado narrativas de neutralidade a si para “racializar” os demais. Um mecanismo retórico de subalternização e distribuição de privilégios. O sistema global da arte tem contribuído para o estabelecimento de um contrato racial a partir da modernidade. Como nos diz a francesa Françoise Verger, referência mundial em estudos decoloniais, “O museu é, desde sempre, um roubo” (2023).
“O museu é uma invenção europeia, uma das mais importantes daquele grande momento de acumulação de riquezas, da acumulação de capital que marca o início da modernidade. A ideia de uma civilização superior, baseada nas questões de raça e superioridade, na ideia de que a Europa deveria juntar todos os tesouros da humanidade, como se a Europa tivesse o papel ou o dever, como uma civilização que sabe o que é a arte e a própria civilização, nasce em paralelo com os museus” (Idem).
A arte, a etiqueta e o bom gosto são dispositivos historicamente usados pelas classes mais abastadas, o conjunto de camadas sociais chamado de burguesia, para se diferenciarem dos demais. Nos seus retratos de executados, Renato Valle desenha em mão oposta à da tradição da arte ocidental. Corpos precarizados que, tratados comumente como objetos, reivindicam, após suas mortes, a condição de sujeitos. No tumulto de seus silêncios, encontramos em Renato Valle, um artista arredio ao cansaço iminente.
BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO
2021 - 2022
Revista ilustrada - 58 páginas
28 x 21 cm
RECIFE.NOV.2025