. .
RECIFE.NOV.2025
+++++ ++++ +++ ++ + 4 + ++ +++ ++++ +++++








 Bananas,
caramelo,
ordem e
     progresso    













ESPELHO, ESPELHO MEU (DETALHE) 2025
Objeto - película, espelhos e molduras de plástico sobre MDF
200 x 200 cm






No Brasil, as praças do poder conhecem encenações diferentes do medo. Em 1964, a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade vestiu-se de moralidade e devoção para imprimir verniz cívico a um ato que pavimentou a ruptura democrática. Meio século depois, num 8 de janeiro já convertido em marco da memória nacional, não foram senhoras de luvas brancas e rosários nas mãos que ocuparam o espaço público, mas furiosos que, à sombra verde-amarela da bandeira, entregaram-se ao saque e à destruição dos símbolos concretos da República.





Se em 1964 o gesto parecia ordenado, quase litúrgico, em 2023 revelou-se caótico e brutal. Ambos, no entanto, partilharam a mesma vocação: vestir de civismo aquilo que, no fundo, era a negação da democracia. O Brasil, afinal, tem o dom de repetir, como desfiles, seus pesadelos. A coreografia mudou, mas o enredo permaneceu: travestir o assalto à democracia de ato patriótico – como se quebrar vidraças ou abrir caminho para tanques fosse apenas uma versão tropical da fé cívica. Camisas de futebol, uniformes canarinhos, capacetes de mototáxi e celulares eretos para a selfie da destruição, os elementos da marcha fúnebre da democracia.





UMA CENA DA VIDA BRASILEIRA DEPOIS DE CÂMARA (DETALHE) 2023 - 2024
Grafite sobre lona crua
Políptico: 242 x 642 cm (conjunto)






Testemunha atenta dos dois momentos históricos, Renato Valle reage com uma série que se torna uma das mais contundentes interpretações da violência atávica na recente história republicana brasileira. O artista revela ter passado duas semanas deprimido após assistir aos eventos transmitidos ao vivo pelas telas do País até lograr a inquietação em obra: “No nosso curto período republicano, golpes e tentativas são tão frequentes que parece que estamos vivendo um eterno desalojar de governo em andamento. Ora vinga o rompimento institucional, ora não”. Neste episódio da república em convulsão, o artista percebe outra vez a genealogia do ódio:








Umberto Eco, certa vez, disse que ‘O amor é extremamente seletivo’. Se eu te amo, eu quero que você me ame de volta, eu não quero que você ame outra pessoa, e não quero que a outra pessoa te ame, e assim por diante. Então, isso restringe as relações humanas. Mas o ódio é generoso! É caloroso. Ele une todas as pessoas contra outras pessoas. Por isso, é usado por políticos frequentemente. Infelizmente, as redes sociais potencializam o ódio como instrumento político





A série braꙄil (sic, grafada com o “b” minúsculo e o “s” invertido e maiúsculo) trata do autoritarismo no período republicano – em vários períodos – não apenas neste quarto mais recente de século 21, em que a República assiste de novo às tentativas de convulsionamento. Composta por doze obras de grandes dimensões, cada tema determina a técnica – desenhos, pinturas a óleo ou acrílica, objetos e uma impressão sobre canvas. Como é regra no ateliê do artista, não há escolha rígida sobre a técnica ou o suporte a serem adotados; antes, o tema impõe a escolha se lhe impõe.







NAPOLEÃO (DETALHE) 2024 - 2025
Óleo sobre tela
180 x 260 cm





OBRA PARA RESTAURAR (DETALHE) 2024 -2025
Acrílica sobre tela
195 x 300 cm





ESPELHO, ESPELHO MEU (DETALHE) 2025
Objeto - película, espelhos e molduras de plástico sobre MDF
200 x 200 cm






O viés é mais filosófico do que histórico - embora a historicidade dos fatos se faça flagrante. Não há preocupação com cronologia; os episódios surgem das inquietações do artista, “quase sempre de forma intuitiva, para depois pensar com maior profundidade e estudar a melhor maneira de representá-los”. Mas é inegável que, no futuro próximo, alguns quadros poderão ser lidos como reflexos claros do teatro de sombras sobre a democracia brasileira. Valle observa:





Violência coletiva é uma espécie de arrastão. Alguém com carisma, espírito de liderança e uma boa estratégia consegue reunir pessoas com os mesmos desejos que, sozinhas, não saberiam como atingir seus objetivos. Muitos, até, não teriam coragem sem um forte estímulo. No campo político ou religioso, e no Brasil há uma mistura perversa dos dois, o arrastão enfim acontece


HOMENAGEM A CILDO MEIRELES E VLADIMIR HERZOG (DETALHE) 2023
Impressão em canvas
100 x 225 cm






A natureza-morta, tradicionalmente, surge na história da arte como um meio de explorar a relação entre observação meticulosa e representação simbólica. Objetos cotidianos – frutas, vasos, livros, utensílios – dispostos com cuidado para revelar texturas, cores, luzes e sombras, permitindo ao artista destilar domínio técnico e sensibilidade estética. Mais que exercício de virtuosismo, contudo, naturezas-mortas carregam mensagens sutis sobre efemeridade, riqueza, poder ou moralidade, reflexões silenciosas sobre vida e sociedade. Van Gogh (1853–1890) usou pinceladas vigorosas e cores intensas para fazer dos Vasos de Girassóis (1888) e da Cesta de Alimentos (1885) experiências emocionais, reflexos de tempestades cerebrais intensas. Paul Cézanne (1839–1906) estruturou objetos e maçãs geometricamente, antecedendo o Cubismo. Não eram apenas laboratórios de formas, mas possíveis exercícios sobre perspectivas existenciais.




Na série braꙄil o nome da obra com esta técnica, irônica e literalmente, é Natureza Morta – um óleo com meticuloso trato da luz, em uma superfície de 1,90 por 2,5 metros. Técnica acima da média, volumetria que faz os objetos saltarem da superfície e planar para o real, os elementos tratados, como naturezas-mortas, evocam o passado-presente contínuo em que parte da sociedade brasileira sequestra símbolos caros e invertidos do nacionalismo para destilar sua cordial violência cotidiana.






BRAꙄIL 2025
MAMAM - Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães





NATUREZA MORTA
2024
Óleo sobre tela
190 x 250 cm







Em disposição de suposta harmonia, os objetos se distribuem como num continuum sobre a parede. Sobre pequenas prateleiras, como totens, está a figura de um soldadinho de chumbo cuja arma aponta para uma Bíblia Sagrada. Um pouco mais acima, indicando a permanência da inconstância institucional, há miniaturas das bandeiras do Brasil no Império e na República. Dois homens também em miniatura integram a cena. Um trajando roupas típicas do Integralismo, versão tupiniquim do fascismo civil do começo do século XX. O outro, como um jogador com a camisa da seleção nacional de futebol, um homem negro, cujo gesto ao avesso tensiona mais sua figura: com a mão, ele faz o White Power, símbolo supremacista branco. Mais acima, com cores pátrias, suspensa por um cabide, uma camisa com o slogan: “Deus, Pátria, Família & Liberdade”, lema do fascismo Italiano de Mussolini, adaptado do pensamento de Giuseppe Mazzinni, um dos pais da unificação italiana, adotado, desta vez, por parcela conservadora e radical brasileira. Um fuzil e uma pistola completam a composição. São desnecessárias maiores legendas. Os signos são evidentes.










NATUREZA MORTA (DETALHES)
2024
Óleo sobre tela
190 x 250 cm






A obra de Renato Valle não se filia a regionalismos ou manchetes efêmeras – embora, aí temos claro, tome partido de seus extratos e circunstâncias. Não atua naquilo que se propõe a ser visto como simetria acima da história. As narrativas deste artista se alimentam justamente das frestas dinâmicas da realidade. Por meio de sua religiosidade, o corpo quase sempre desarmônico da sociedade expõe suas perversas dimensões políticas. Como ele mesmo sublinha, estes são apenas os símbolos mais recentes de uma violência (des) estrutural.





Em seu itinerário, o artista revisita também obras hoje consideradas peças de referência da semiologia da colonialidade nacional – expediente recorrente em parte considerável da arte contemporânea brasileira, em reescrituras assinadas por nomes como Denilson Baniwa, Anna Bella Geiger, Jaime Lauriano, Dalton Paula, Tiago Sant’Ana ou Gê Viana. Peça de destaque na produção do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), durante sua estada no Brasil após se ver desempregado e falido diante da ruína do absolutismo francês, Um Jantar Brasileiro é considerado documento visual de primeira importância sobre a vida cotidiana do Brasil na puberdade de sua transição de colônia para império. A despeito de ser uma obra de arte – produto da observação e interpretação de um homem – trata-se de uma imagem elevada à condição de verdade pelo sistema pedagógico nacional, a partir da incorporação póstuma do álbum Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, realizado por Debret em 1835. Uma espécie de janela para observar o Brasil como ele foi e compreender o que o levou a ser o que é.










PERSISTÊNCIA DOENTIA (DETALHES)
2024
Óleo sobre tela
180 x 250 cm








Em sua paródia crítica, Renato Valle mantém os gestos que, como arquétipos, confirmam a estrutura social sintetizada nos personagens. No quadro de Debret, o menino à frente ergue-se de forma ao mesmo tempo infantil e submissa em direção às migalhas. Sobre ele, a dona da casa lança um olhar de terna perversidade. A criança performa o papel de animalzinho de estimação, distraindo os brancos entre o mastigar e o divagar sobre a vida modorrenta na nova sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Um detalhe se destaca: ao pescoço, uma espécie de gargantilha – objeto que, com o acobreado intensificado na pintura, reforça visualmente a condição imposta. Erguido dócil e diligente em direção às migalhas da senhora, há uma coleira, insinuando que a liberdade do pequeno é limitada, subordinada à vontade do dominante. A cena de inegável necropolítica não oculta a aniquilação de uns corpos sobre outros, mas, nos livros escolares, poderia ser lida como flagrante testemunho de harmonia nas relações raciais perversamente desiguais.




Na atualização de Valle, pouca coisa mudou desde os oitocentos: as elites nacionais continuam a usar conceitos abstratos de nação e civilização para manter concretos privilégios e perversidades. O artista comenta: “Não é uma releitura, é uma atualização”. A atualização percebe as ambiguidades capturadas por Debret: superioridade inata da branquitude, subalternização genocida dos corpos negros e, numa operação de embelezamento, a ausência de conflitos aparentes entre grupos diferentes. Um escravismo entendido, portanto, da harmonia, nos termos de Gilberto Freyre. Persistência doentia é o nome dado à sua releitura do clássico debretiano.










PERSISTÊNCIA DOENTIA (DETALHES)
2024
Óleo sobre tela
180 x 250 cm







Durante a fase de projeto, episódios biográficos ajudam a atualizar significados, aumentando a porosidade entre arte e realidade:





A intensificação dessa série, no início de 2023, coincidiu com a mudança do meu atelier. Contratei um caminhão-baú com motorista e três ajudantes. No dia marcado, só um apareceu. Passou por nós um catador de lixo numa bicicleta com material para reciclar. O motorista o chamou, ele aceitou e colocou a bicicleta no caminhão. Perguntei se queria recolher algo para si e ele aproveitou, trazendo seus pertences para minha garagem

Perguntei se gostaria de outra profissão, e ele disse que sabia pintar, fazer faxina, mas era pai de quatro filhos e preferia ser catador. Fiquei intrigado e quis comparar atividades. Ele me contou que pintou um apartamento por R$ 120 e fez uma faxina em outro por R$ 60. Só meses depois, percebi que os personagens com a bandeira do Brasil e com roupas da seleção representavam, respectivamente, a mulher que explorou o rapaz na faxina e o homem que o explorou na pintura

Muitas vezes começo por intuição e depois entendo o que está sendo feito. Usar uma obra do tempo do Império, colocando símbolos da República, não é uma releitura, mas uma atualização. Revela o comportamento escravista presente

Creio que, entre colonizadores e colonizados, o Brasil é polarizado desde a ocupação portuguesa. Vários fatores, principalmente a importação do maior número de escravizados da história do planeta e a manutenção dessa prática pelo maior período de que se tem notícia, arraigaram culturalmente uma polarização entre opressores e oprimidos. Para além desses pólos, há também uma massa que agrega omissos e indiferentes



PERSISTÊNCIA DOENTIA 2024
Óleo sobre tela
180 x 250 cm









Em vertigem rizomática, a série alterna credulidade, ironia, ceticismo e desesperança, mostrando que o Brasil é um projeto de sucesso – um bem-sucedido projeto de exclusão, capaz de produzir, em mão contrária, uma poética crítica espessa. As imagens vocativas compartilham implicações éticas e escolhas estéticas: linguagens e materiais determinados pelo tema. A pecha de “república de bananas” é comentada na obra A República: dois metros por dois metros, bananas reais mumificadas e tinta acrílica sobre bananas artificiais fixadas em MDF. Explicitamente agrupadas no formato do mapa do Brasil.

A incompletude do projeto republicano é sugerida em Obra para restaurar (2024-2025): uma grande acrílica sobre tela, (1,95 x 3 m), na qual a frase “Ordem e Progresso” parece despencar do globo azul central da bandeira nacional. A submissão permanente ocorre em Complexo de Vira-lata: duas grandes bandeiras sobrepostas, uma brasileira, outra norte-americana, cujas linhas estruturam também o corpo de um cachorro de raça indefinida; a cabeça se confunde com o quadrante azul com estrelas representando os estados dos dois países: os EUA e o Brasil.





A REPÚBLICA 2020 -2025
Objeto - bananas mumificadas e bananas artificiais
200 x 200 cm







Voltei pro início da República e seus primeiros símbolos. A primeira bandeira republicana é uma imitação da bandeira norte-americana, estadunidense. Listras amarelas e verdes, e um retângulo no canto superior esquerdo, com as estrelas que representam os estados



A REPÚBLICA 2020 -2025
Objeto - bananas mumificadas e bananas artificiais
200 x 200 cm








Pensei na frase ‘Complexo de vira-latas’. Passei a estudar uma forma plástica que sintetizasse as duas bandeiras e esta frase. Enquanto estudava possibilidades para uma composição, saí fotografando vira-latas pelas ruas

Demorei um pouco para chegar numa solução ideal e representar o que queria. Sobrepor a bandeira dos EUA à sua imitação brasileira e vazar a imagem de um cachorro resolveu a obra. Escolhi a imagem de um vira-lata que se encaixou perfeitamente no retângulo. Ao recortá-lo, parte da bandeira da nossa república apareceu e as três imagens se integraram em uma tela que mede 185 x 350 cm



COMPLEXO DE VIRA-LATA 2023 - 2025
Acrílica sobre tela
185 x 350 cm












OBRA PARA RESTAURAR 2024 - 2025
Acrílica sobre tela
195 x 300 cm






A série nos confirma a polissemia de Renato Valle e sua impressionante capacidade de manter-se íntegro em linguagens aparentemente divergentes. Com frescor pop, ainda que essencialmente mórbido no tema, Valle constrói uma paródia elogiosa a Cildo Meireles – artista multimídia, pioneiro da arte conceitual no Brasil, que em suas Inserções em Circuitos Ideológicos - projeto cédulas, valeu-se da circulação de objetos e mercadorias para driblar e criticar a ditadura militar.

A obra Homenagem a Cildo Meireles e Vladimir Herzog (2023), uma impressão em canvas, revisita a coragem artística e política de Meireles. Durante a ditadura, Cildo carimbava em cédulas de dinheiro a hoje icônica pergunta: “Quem matou Herzog?”, denúncia direta do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, pelo DOI-CODI. Meio século depois, Renato Valle retoma esse gesto: imprime em grande formato uma cédula marcada pela mesma indagação, agora transformada em peça única e autoral. Assim, celebra a inventividade contestatória de Meireles e reaviva a memória de um período autoritário. Ao reafirmar a atualidade da prática política na arte como exercício de democracia, Valle imprime também liberdade. Se, antes, Meireles recorria ao anonimato como estratégia de circulação da obra, hoje Renato Valle assume publicamente o gesto – como homenagem e continuidade.








HOMENAGEM A CILDO MEIRELES E VLADIMIR HERZOG 2023
Impressão em canvas
100 x 225 cm







Na poética da memória política, Renato articula símbolos para fabular a redundância histórica. Discursos são sintetizados em arquétipos: personagens públicos e notórios ilustram a repetição patológica dos fatos. Numa homenagem ao amigo Gil Vicente, notadamente em sua série Inimigos (2005), retrata-se o Marechal Deodoro da Fonseca prestes a enforcar, sentado e passivo, o imperador deposto Pedro II. Um enorme grafite sobre lona crua, numa superfície pouco usual para o desenho: 2,65 x 2,12 metros.






Em 2010, havia posado para o último quadro da série Inimigos, do meu amigo Gil Vicente, um dos conjuntos artísticos recentes que mais questionou as instituições. Homenagear o meu colega de profissão e amigo de infância seria, além de uma honra, bastante pertinente









INIMIGOS – HOMENAGEM AO AMIGO GIL VICENTE
(DETALHES)
2023 - 2025
Grafite sobre lona crua
265 x 212 cm










Nos anos em que Gil desenvolveu a série, era visível o crescimento assustador de “igrejas” ordinárias e bilionárias, isentas de impostos, penetrando nos partidos políticos. Durante a Nova República, todos os governantes se associaram, em algum momento, aos representantes dessas ‘religiões’. Muitos pregadores, de teologias esdrúxulas, invadiram todas as instituições, em todas as esferas. O dinheiro fácil e a capacidade de arrebanhar apoio dos seus fiéis deve ser algo muito tentador

Pensei em atualizar a série e comecei a fazer estudo. Porém, o uso de uma imagem de qualquer político vivo me incomodava. Queria falar das causas e não dos sintomas das nossas doenças sociais. Personificar o mal, numa figura atual, desvirtuaria esse propósito. Não podia usar a imagem de Gil em uma composição que desse sequência aos seus Inimigos


INIMIGOS – HOMENAGEM AO AMIGO GIL VICENTE 2023 - 2025
Grafite sobre lona crua
265 x 212 cm







Outro grafite sobre tela, Canudos, Caneca, Diretas… e o Brasil não mais resiste (2006), apresenta horizontalmente, numa superfície de mais de sete por dois metros de altura, traz a junção dos corpos de Cristo, Caneca e Conselheiro no mesmo cadáver. São, portanto, mergulhos em direção harmonicamente opostas: em dissecação, o corpo aponta para a realidade histórica ao redor e na própria subjetividade do artista.

O grafite intenso e obsessivo dramatiza o caráter cadavérico do corpo: Renato Valle rompe com a longa tradição da história da arte, na qual o desenho ocupa lugar secundário. No Renascimento, mesmo em mestres como Leonardo e Michelangelo, o desenho era, sobretudo, esboço preliminar. Nas academias dos séculos XVII e XVIII, consolidou-se a ideia de que o desenho era apenas etapa técnica, degrau para chegar aos gêneros nobres. No modernismo, Picasso e Portinari multiplicaram estudos em papel que permaneceram à sombra das telas e murais. Valle desloca o lugar tradicional do grafite: o que geralmente é rascunho íntimo ganha escala monumental, trazendo à tona rostos e corpos de vítimas da história e da política. Esse gesto não é apenas estético, mas ético: amplia o traço para o tamanho da memória coletiva, devolvendo presença ao que a narrativa oficial tentou apagar. A escala é muscularizada pela técnica: os tons obtidos pelo grafite criam atmosfera opressiva, tensa, pátinas do tempo sobre a história em ciclos.










CANUDOS, CANECA, DIRETAS... E O BRASIL NÃO MAIS RESISTE 2006
Grafite sobre lona crua
212 x 773 cm








Na história da arte, o desenho foi visto como estruturador de uma obra maior. Meu papel é defender o desenho como obra em si, autônoma. Não é o passo anterior de uma obra; é a própria obra





Em braꙄil, Valle retoma Olga Benário Prestes como pauta. Num gigantesco políptico de quatro cenas, ela aparece sóbria - desde a prisão, no Rio de Janeiro, até a penitenciária feminina da Gestapo em Berlim, acusada, além de ser comunista, pelo crime de ser judia. A companheira de Luis Carlos Prestes manteve a altivez antes de ter os cabelos raspados e ser levada ao campo de extermínio de Bernburg. Em outro desenho monumental, Getúlio Vargas figura igualmente sereno, gravata borboleta sugerindo formalidade e certa candura. É o presidente que exigiu pessoalmente ao chefe da polícia política, Filinto Müller, a deportação de Olga para os cuidados de Hitler. Ao lado, em outro quadrante, temos Olga de cabeça raspada em desespero, sob arames farpados, com sua filha Anita Leocádia retirada dos braços. Abaixo, uma imagem silenciosa da câmera de gás, vazia, onde Olga seria executada em 23 de abril de 1942, com 34 anos, junto a outras 199 prisioneiras, várias delas antigas amigas em Berlim ou no Rio de Janeiro. O silêncio da cena reforça a morbidez do ambiente. Valle evoca o contexto brutal que a levou à morte.












UMA CENA DA VIDA BRASILEIRA DEPOIS DE CÂMARA (DETALHES) 2023 - 2024
Grafite sobre lona crua
Políptico: 242 x 642 cm







Condenada pelos regimes de Vargas e de Hitler, Olga foi conduzida a um campo de extermínio, onde a morte era engenharia e sistema. Conduzidas sob engano, as vítimas eram levadas a câmaras seladas e expostas a gases. O tempo exato dependia de fatores como o tipo de gás, concentração, número de pessoas e ventilação. Em geral, a perda de consciência ocorria em poucos minutos. Em menos de vinte, o oxigênio era impedido de circular nos tecidos; os órgãos entravam em falência total.










UMA CENA DA VIDA BRASILEIRA DEPOIS DE CÂMARA (DETALHES) 2023 - 2024
Grafite sobre lona crua
Políptico: 242 x 642 cm








O artista transforma essa memória em presença: seu grafite monumental não mostra o horror explicitamente, mas imprime sua gravidade, devolvendo dignidade às vítimas e criando um espaço de lembrança ética. O traço funciona quase como ícone profano, tornando visível a história de sofrimento e resistência que a narrativa oficial tenta ocultar. Eis outra estratégia invulgar do artista: ao usar grafite, material ordinário, ele rompe com a lógica canônica da pintura histórica, cuja figuratividade exalta heróis nacionais e símbolos de poder e evoca representação da virilidade de elementos fálicos em espadas, estandartes, pistolas e canhões para enaltecer heróis articulados em prol de mitos e unidade nacionais. Em suas elaborações, a mitificação se lança sobre o que o establishment pretende ocultar.



Como observadores íntimos da história, voyeurs do terror, somos convidados a perceber seus desenhos não como provas da grandeza técnica e laboral que de fato o artista possui, mas para inverter, em ironia sutilíssima, a tradição canônica da história da arte em santificar forjados heróis nacionais.





TECIDO SOCIAL 2025
Objeto - retalhos de tecidos e folhas de ouro sobre MDF
200 x 200 cm





ESPELHO, ESPELHO MEU 2025
Objeto - película, espelhos e molduras de plástico sobre MDF
200 x 200 cm















RECIFE.NOV.2025
acessibilidade
+
++
+++
livros vídeos expediente
VO
   TO
         S
  RENATO VALLE & BRUNO ALBERTIM  
    RELIGIOSIDADE E POLÍTICA      

  capítulos: