RECIFE.NOV.2025
+++++ ++++ +++ ++ + 1 + ++ +++ ++++ +++++
①
Expurgos
Expurgos
1986
Óleo sobre tela
90 x 75 cm
Óleo sobre tela
90 x 75 cm
65 x 110 cm
2018-2019
Óleo sobre tela
150 x 150 cm
Óleo sobre tela
100 x 100 cm
EX-VOTO - MUNHECA DE PAULO2020
Grafite sobre papel
21 x 15 cm
Sem nunca ter visto antes esse tipo de objeto arraigado ao catolicismo popular, o artista primeiro se deixa sequestrar sensorialmente pela enorme capacidade expressiva, em contraste com a sintaxe extremamente econômica das estratégias escultóricas: linhas rápidas e golpes de goivas improvisados sobre refugos de madeira. Pequenas fendas, buracos e depressões capazes de conotar, mais que feições, subjetividades. Intenções, sofrimentos, martírios, superações. Em grandeza comunicacional, uma simplificação de formas a lembrar a pintura de Modigliani, o italiano que inscreveu suas figuras alongadas - olhos, bocas e feições pinceladas em traços econômicos, longilíneos - na arte moderna do começo do século 20.
“Passei a visitar museus e galerias e, em 1984, no Museu do Homem do Nordeste, me deparei com um conjunto de ex-votos de madeira. Fiquei muito impressionado. Em uma visita posterior ao Museu do Estado de Pernambuco, me deparei com outro conjunto de ex-votos. Aquilo não me saía da cabeça”
Óleo sobre tela
110 x 170 cm
33 x 32 cm
Pastel seco sobre papel
24 x 22 cm
2000
Óleo sobre tela
100 x 100 cm
Óleo e acrílica sobre tela
100 x 100 cm
1999
Litografia
17,8 x 15,8 cm
2000
Óleo sobre tela
100 x 100 cm
33 x 32 cm
Pastel seco sobre papel
24 x 22 cm
2001
Óleo sobre tela
100 x 100 cm
Óleo e acrílica sobre tela
100 x 100 cm
Grafite sobre tela
Políptico: 12 x 9 cm (cada)
Grafite sobre tela
Políptico: 30 x 30 cm (cada)
Grafite sobre tela
Políptico: 50 x 40 cm (cada)
Resina de poliéster
34 x 21 x 23 cm
Litografia
26 x 25 cm
“Foi uma espécie de fascínio: a simplificação das formas, a força na expressão, sobretudo no dos feitos em madeira. Muitos deles são esculturas de alta qualidade. Depois, percebi que o ex-voto me atraía não só por questões estéticas, mas por uma potência espiritual. Descobri que, quando eu trabalhava um ex-voto, era como se tivesse fazendo um tsuru, o origami que representa um pássaro sagrado do Japão, depositando no objeto que está sendo feito “votos”. O Diário de votos e ex-votos traduziria essas duas experiências humanas: drama e esperança”
Grafite sobre papel
42 x 37 cm
42 x 37 cm
75 x 55 cm
42 x 37 cm
75 x 55 cm
“Em 1998, fiz dezenas de pinturas e desenhos de ex-votos , não mais de observação. Eram reelaborações, algumas vezes, a ‘figura humana’ parecia se confundir com um ex-voto”
Óleo sobre tela
Óleo sobre tela
65 x 58 cm
Óleo sobre tela
65 x 58 cm
Óleo sobre tela
46 x 55 cm
Óleo sobre tela
70 x 55 cm
Óleo sobre tela
70 x 55 cm
Renato Valle aprofunda, então, uma série de estudos, tamanhos e montagens distintas sobre o tema. Até o tamanho diminuto, de 5x5 centímetros, prevalecer. Quando, em 2002, é divulgado um edital para bolsas de pesquisa e criação dentro da programação do 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, Renato se propôs a um projeto de expurgo. “Uma verdadeira penitência”: realizar uma série de cinco mil (!) desenhos sobre, ou a partir de, ex-votos. Aprovado pelo edital, o projeto se chamava Santa Quitéria, nome de uma antiga capela de peregrinações nos arredores de Garanhuns, cidade de gados, couro e enorme produção leiteira, no Agreste de Pernambuco.
Óleo sobre tela
55 x 46 cm
Grafite sobre papel
48,2 x 180,8 cm
Grafite sobre papel
86,7 x 186 cm
Católico desde sua anexação violenta ao Ocidente como colônia portuguesa nesta margem do Atlântico, o Brasil se tornou viável ao projeto colonialista tanto pelo massapê úmido da cana-de-açúcar, como pelo empenho militante da Santa Igreja em promover sua cruzada nos trópicos. Um catolicismo tórrido e bronzeado, capaz de gerar uma ampla cultura material da fé propalada pelo mundo ibérico. No Nordeste do Brasil, objetos votivos são pedra de assento da fé popular brasileira.
Grafite sobre papel
30,4 x 183,3 cm
Pastel seco sobre papel
68 x 48 cm
Pastel seco sobre papel
68 x 48 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)
“Criei uma expectativa grande e caí no desencanto. Aquilo parecia coisa da Idade Média. Perdi o interesse. A relação com o ex-voto, ali, era outra coisa. Presenciei miséria e exploração da fé. O Diário de votos e ex-votos traduziria essas duas experiências humanas: drama e esperança”
A revolta plasmada sobre a exploração da fé de gente humilde e crédula paralisa a capacidade de produção da série. São cerca de dois meses sem rabiscar qualquer traço. As cenas, contudo, lhe tumultuavam a memória. Nutriam o desejo de expurgo dos ex-votos do pensamento arranhado. Depois do hiato traumático na produção o projeto virava o Diário de votos e ex-votos e a série Cristos anônimos.
A pesquisa iniciada pelo interesse escultórico em ex-votos de madeira ganhava desdobramento como diário pessoal. Recobrado o impulso, tipos diferentes de grafites, palitos de churrasco para o desenho em baixo relevo, variação entre linhas mais simples e traços complexos, contrastes de luz e sombras haviam já preenchido cerca de quatro mil desenhos com variações de ex-votos desde as fases anteriores do trabalho.
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos, 5 x 5 cm (cada)
No meio do percurso, Renato Valle encontra uma página do Ministério da Justiça sobre crianças desaparecidas. Desde a primeira linha da leitura, já lhe parecia impossível negligenciar as revelações. Investido de expediente investigativo próprio, lança mãos de recursos jornalísticos. Imprimia os relatos, observava as feições de infantes assassinados em processos de pesada crueldade. Voltar já lhe era impossível. Cada relato lhe parecia um pedido incontornável de socorro e de escritura da face.
Em suas diligências, o artista depara-se com a história de uma menina morta na periferia do município de Paulista. Estrangulada pelo ex-namorado da irmã como vingança pelo término do relacionamento. Nos autos do Ministério da Justiça, encontra a foto de outra garota. Fornecida pela família, era um antigo retrato amassado. Perturbava-lhe o registro: como uma criança, um ente em crescimento, havia sido tão brutalmente assassinada e a única averbação visual de seu rosto estava guardado como papel de embrulhar prego, amarrotado, coisa qualquer numa gaveta esquecida? Silenciosamente, o artista assume o compromisso de devolver ao público o rosto dessas infâncias trucidadas.
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)
Galeria Janete Costa, Recife-PE
As faces dessas crianças são divididas em dois grandes tombos: “Crianças não identificadas” e “Crianças desaparecidas”. No conjunto de cinco mil desenhos, não chegam a 5% do todo. São 243 retratos de crianças. Desaparecidas ou assassinadas, prefácios visuais a impor ritmo emocional à série e, sobretudo, a imagética de um projeto civilizatório cadavérico. “A exposição dessa obra colossal, exposta em várias cidades brasileiras, implica em metros e metros de parede, perfazendo um desenho mural, um painel gigantesco, fundado na dor e que engolfa o corpo que se coloca diante dele”, observa Agnaldo Farias (2004. p. 92), professor da Universidade de São Paulo e curador atento à produção de Valle.
DIÁRIOS DE VOTOS
E EX-VOTOS (SELEÇÃO)
E EX-VOTOS (SELEÇÃO)
2003-2005
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)
“Bem antes do projeto, eu havia começado a fazer esses desenhos num formato diferente. Era de 4,5 por 3 cm; depois, 9 por 9 cm. Depois, passei a fazer outros em formatos maiores e montá-los em madeiras cortadas na forma de cruz. O conjunto de desenhos montado naquele tipo de suporte era como se cada grupo ou multidão carregasse sua cruz. Foram três montagens e, com desenhos e suportes de dimensões diferentes. No início, o foco era só os ex-votos. Pensava nas pessoas comuns, aqueles que constroem suas vidas e realizam as coisas anonimamente, a gente simples, explorada, dos sofredores que carregam suas cruzes e que não conhecemos ou que ignoramos conhecer. Porém estão vivendo e, por mais que sejam desprezados, têm seu espaço no mundo, mesmo que na marra. Chamava esses trabalhos de Cristos anônimos”
Entre cruzes, cristos e ex-votos estão chaves para o entendimento posterior de Renato Valle e de uma obra que não poderia inscrever-se na tradição da identidade tão cara ao modernismo pernambucano de longa duração. Sua obra não se filia a regionalismos, embora tome partido de seus extratos e circunstâncias. Não atua naquilo que se propõe a ser visto como simetria acima da história. As narrativas deste artista visual se alimentam justamente das frestas dinâmicas da realidade. Por meio de sua religiosidade, o corpo quase desarmônico da sociedade expõe as perversas dimensões políticas.
Diário de votos e ex-votos e Cristos anônimos, assim, marcam um divisor de correntes caudalosas na trajetória de Renato - seu impacto retira o desenho do âmbito de linguagens marginalizadas no País. A seu modo, uma série que o inscreve como anti civilizatório contemporâneo no panorama das artes brasileiras.
Nos termos de Norbert Elias, civilização seria uma ideia aparelhada para o Ocidente impor às noções os conceitos reguladores que tem de si. Isto é, conceituar o mundo de acordo com seus parâmetros, estabelecendo hierarquias entre bom e ruim, elegível e banível, público e privado. Entre o que deve viver e o que deve morrer. O comportamento, a etiqueta e a religião, em cruzadas de várias flechas, como corpus ideais para a imposição violenta da autoproclamada civilização. Renato Valle faz a operação inversa: a partir dos campos da política e da religião, sua obra se propõe “anticivilizadora” ao expor o sangue coagulado sob os azulejos. Do tensionamento permanente com o mundo em suas dimensões, Renato Valle ergue uma obra de sussurros gritados pela inversão do conceito.
Galeria Janete Costa, Recife-PE
Galeria Janete Costa, Recife-PE
Galeria Janete Costa, Recife-PE
“Não gosto dessa história de arte engajada. Prefiro refletir no trabalho minhas experiências e vivências do que me engajar em algum movimento social e usá-lo para isso. O que gera um ex-voto é o drama de alguém enfermo, moribundo, desaparecido, prostituído, seja vivido por uma criança ou um idoso. O ex-voto é uma figura dramática”
Óleo sobre tela
80 x 60 cm
Óleo sobre tela
100 x 80 cm
Óleo sobre tela
80 x 60 cm
Óleo sobre tela
80 x 60 cm
Óleo sobre tela
80 x 60 cm
Óleo sobre tela
100 x 80 cm
Óleo sobre tela
80 x 60 cm
Óleo sobre tela
80 x 60 cm
“Só que, nos anos 1980, comecei a me interessar muito mais pelo aspecto plástico do ex-voto. Quando iniciei esse projeto, fui me dando conta de que minha ligação com o objeto ia muito além das questões estéticas. No decorrer do trabalho, isso foi ficando cada vez mais claro e, além disso, o ex-voto era algo recorrente na minha produção. Isso me deixava intrigado. Quis fazer uma coisa exaustiva, como que para exorcizar os ex-votos da minha vida, mas não houve jeito. Fui me aprofundando cada vez mais nessas questões. Inicialmente, o projeto tinha o nome de Santa Quitéria, porque queria desenvolvê-lo num santuário. Achava que o ambiente seria ideal para realizar os cinco mil desenhos. Depois que percebi a sua importância como símbolo em minha vida, passei a usá-lo como um “exercício de religiosidade”, o motivo não era a angústia, mas o alívio de uma angústia”
Em Renato Valle, a fé assume uma incontornável superfície política. Porque não apenas metafísica. Mas observadora das fraturas do tecido social em que se faz. Suas crianças, aqui, evocam a necropolítica anunciada por Foucault ou Achille Mbembe como partes de um estado réprobo, gerador de mecanismos por vezes sutis em distinguir os que devem morrer dos que podem viver. Uma sociedade em demissão, politicamente, de seus projetos de fé.
Óleo sobre tela
100 x 80 cm
RECIFE.NOV.2025