. .
RECIFE.NOV.2025
+++++ ++++ +++ ++ + 1 + ++ +++ ++++ +++++








      Expurgos      









ORATÓRIO IV
1986
Óleo sobre tela
90 x 75 cm






O filho de Apolo passou de maneira injustamente discreta para a história. Quase um anônimo. Um personagem menor, a despeito de seu poder nada ordinário: Asclépio tinha a capacidade de trazer os mortos à vida.


ORATÓRIO V 1986
Óleo sobre tela
90 x 75 cm





Nascido do romance do voluntarioso e belo deus das artes e do Sol com a Virgem Corônis, veio ao mundo às pressas, numa cesariana operada na barriga ainda quente da mãe já morta. Criado por um centauro que o educara no entendimento das ervas, o órfão especializou-se na cura das enfermidades e desgraças dos corpos. Morto por Zeus com um raio para evitar que o filho alterasse a ordem do mundo, tornando os humanos imortais, seu santuário seguiria recebendo levas de peregrinos. Como prova material da gratidão, os fiéis passariam a depositar, pelo chão e paredes do templo, réplicas esquemáticas de membros significativos do corpo humano. Cabeças, pés, pernas, genitálias.






BEBÊ EX-VOTO 2018-2019Óleo sobre tela
65 x 110 cm




EX-VOTO
2018-2019
Óleo sobre tela
150 x 150 cm
UM VOTO PARA UM EX-VOTO2019
Óleo sobre tela
100 x 100 cm



Simulações em madeira, pedra e resina de partes do corpo seriam também depositados em honra de Apolo e Ártemis, duas das mais prestigiadas divindades da chamada Grécia Antiga, nos templos de dicados às divindades responsáveis, respectivamente, à gestão da beleza e da castidade entre os humanos. Mais de dois mil anos antes de Cristo, portanto, os ex-votos eram já meios populares de materialização de agradecimentos a curas, restaurações e reavivamentos por intercorrência divina. Eram comuns, antes, também na Antiga Mesopotâmia e outras civilizações remotas. Com as romarias popularizadas por Portugal a partir do século 17, igrejas, capelas e templos, públicos ou particulares, passaram a se transformar, Brasil adentro, em memoriais vívidos da fé. Grandes salas de milagres onde a crença católica e morena brasileira se objetiva, desde então, por meio de pedaços toscos de madeira como súmulas de corpos regenerados. Ou, em menor quantidade, de obras refinadas encomendadas por famílias abastadas até a criadores de renome. Na Itália do Renascimento, artistas como Ticiano também executavam pinturas com o propósito do reconhecimento da graça encerrado nos limites dos ex-votos. O quadro Jacopo Pesaro sendo apresentado pelo Papa Alexandre VI a São Pedro lhe foi encomendado pelo próprio nobre italiano como forma de agradecer à igreja sua vitória numa grande batalha de 1502. Sinteticamente narrativas, pinturas votivas são também populares no Brasil desde os primeiros tempos de colonização.

  No começo dos anos 1980, Renato Valle descobre os ex-votos numa visita prosaica a um museu do Recife.






EX-VOTO - MUNHECA DE PAULO
2020
Grafite sobre papel
21 x 15 cm





Sem nunca ter visto antes esse tipo de objeto arraigado ao catolicismo popular, o artista primeiro se deixa sequestrar sensorialmente pela enorme capacidade expressiva, em contraste com a sintaxe extremamente econômica das estratégias escultóricas: linhas rápidas e golpes de goivas improvisados sobre refugos de madeira. Pequenas fendas, buracos e depressões capazes de conotar, mais que feições, subjetividades. Intenções, sofrimentos, martírios, superações. Em grandeza comunicacional, uma simplificação de formas a lembrar a pintura de Modigliani, o italiano que inscreveu suas figuras alongadas - olhos, bocas e feições pinceladas em traços econômicos, longilíneos - na arte moderna do começo do século 20.


Passei a visitar museus e galerias e, em 1984, no Museu do Homem do Nordeste, me deparei com um conjunto de ex-votos de madeira. Fiquei muito impressionado. Em uma visita posterior ao Museu do Estado de Pernambuco, me deparei com outro conjunto de ex-votos. Aquilo não me saía da cabeça

EX-VOTOS PENDURADOS2002
Óleo sobre tela
110 x 170 cm






Lévi-Strauss informava que, mais que utilidade, o objeto guarda a memória. Aparente matéria inerte, a coisa concentra a ética de seu tempo. Ao perceber a dimensão sacra do objeto, Renato Valle, ainda que não tivesse plena consciência da aproximação, vivia uma espécie de teofania. Um tipo de aproximação íntima com uma expressão material do divino.



EX-VOTO 2004Pastel seco sobre papel
33 x 32 cm
EX-VOTO I1999
Pastel seco sobre papel
24 x 22 cm


EX-VOTO MULHER
2000
Óleo sobre tela
100 x 100 cm



EX-VOTO DE MULHER2017
Óleo e acrílica sobre tela
100 x 100 cm



EX-VOTO DE ÓCULOS
1999
Litografia
17,8 x 15,8 cm





Jovem, em início de carreira, o artista ganhava nos objetos votivos uma de suas obsessões, um dos elementos mais recorrentes de sua gramática visual e, embora desconfiasse menos ainda à época, o vértice de sua futura série Diário de votos e ex-votos - um de seus mais marcantes trabalhos encadeados, uma das séries de maior contundência vibracional da arte contemporânea brasileira.





EX-VOTO - HOMEM
2000
Óleo sobre tela
100 x 100 cm



EX-VOTO 2001Pastel seco sobre papel
33 x 32 cm
EX-VOTO 21999
Pastel seco sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO
2001
Óleo sobre tela
100 x 100 cm



EX-VOTO DE HOMEM2017
Óleo e acrílica sobre tela
100 x 100 cm





JOGO COM EX-VOTOS2013
Grafite sobre tela
Políptico: 12 x 9 cm (cada)



JOGO DE EX-VOTOS2010
Grafite sobre tela
Políptico: 30 x 30 cm (cada)



JOGO DE EX-VOTOS2010
Grafite sobre tela
Políptico: 50 x 40 cm (cada)








Da observação como exercício e disciplina, Renato volta aos museus, munido de grafite e papel. Diante de ex-votos de várias épocas no acervo, realiza uma série de desenhos de investigação. Assume os objetos como pontos de partida da breve série de pinturas Alguns objetos de adoração I, II e III, três telas (94x70 cm, cada), de 1985. Cada pintura, na verdade, consiste num conjunto de escaninhos (um com quatro; o segundo, com nove; o último, com dezesseis nichos, perfazendo estantes) em que cabeças, bustos, pernas e ventres estão guardados. Figuras arredondadas, de volumetria a distanciá-las do fundo. Tristemente estáticas, personagens ostentando curativos e (pouco) escondendo feridas, deformações, chagas. Na estratégia pictórica, como lembra o professor Agnaldo Farias (2024. p. 84), “as figuras são brancas como gesso, ou como cadáveres, efeito sublinhado pela frialdade do fundo azul de todas elas”.





EX-VOTO2007
Resina de poliéster
34 x 21 x 23 cm



EX-VOTO 2015
Litografia
26 x 25 cm


Foi uma espécie de fascínio: a simplificação das formas, a força na expressão, sobretudo no dos feitos em madeira. Muitos deles são esculturas de alta qualidade. Depois, percebi que o ex-voto me atraía não só por questões estéticas, mas por uma potência espiritual. Descobri que, quando eu trabalhava um ex-voto, era como se tivesse fazendo um tsuru, o origami que representa um pássaro sagrado do Japão, depositando no objeto que está sendo feito “votos”. O Diário de votos e ex-votos traduziria essas duas experiências humanas: drama e esperança


EX-VOTO I2004
Grafite sobre papel
42 x 37 cm





A estratégia dos nichos seria novamente acionada numa série de pinturas com oratórios, realizada em anos posteriores. Confrontando cotidiano e religiosidade, por exemplo, surge a série de óleos sobre telas Natureza-morta com ex-voto I, II e III. Datadas do ano de 1994, as três telas trazem os ex-votos em polípticos ao lado de elementos banais como frutas (pedaços de melancia, bananas, um coco verde aberto com canudo, pronto para ser consumido). Em 1998, dezenas de figuras votivas são ordenadas numa impressionante composição de desenhos de grafite sobre papel numa composição, em alusão ao símbolo mais caro ao cristianismo. Chama-se Crucifixo. Numa série anterior, de 1986 e 1987, sacrários alternam maquetes de rosto em madeira e, outra vez, frutas comuns no cotidiano nordestino: cocos, bananas.





EX-VOTO 2 2004 Grafite sobre papel
42 x 37 cm



EX-VOTO 4 2004 Grafite sobre papel
75 x 55 cm
EX-VOTO 3 2004 Grafite sobre papel
42 x 37 cm



EX-VOTO 5 2004Grafite sobre papel
75 x 55 cm
Num jogo de sentidos, a “natureza-morta” substitui a imagem de Cristo ou de santos - todos, obviamente, mortos. Podem sugerir tanto a dimensão sagrada do cotidiano – ou, em mão inversa, a banalização mundana do sagrado. O ex-voto, como tema ou forma, ia se aderindo à subjetividade do artista.




Em 1998, fiz dezenas de pinturas e desenhos de ex-votos , não mais de observação. Eram reelaborações, algumas vezes, a ‘figura humana’ parecia se confundir com um ex-voto


ALGUNS OBJETOS DE ADORAÇÃO I, II e III 1985 Políptico: 94 x 210 cm (total)
Óleo sobre tela



NATUREZA MORTA COM EX-VOTOS I 1994
Óleo sobre tela
65 x 58 cm
NATUREZA MORTA COM EX-VOTOS II 1994
Óleo sobre tela
65 x 58 cm





ORATÓRIO COM BANANAS 1987
Óleo sobre tela
46 x 55 cm


ORATÓRIO III 1986
Óleo sobre tela
70 x 55 cm



ORATÓRIO I 1986
Óleo sobre tela
70 x 55 cm





O ex-voto se impunha como obsessão. De inquietação criativa até o incômodo: “Pensei em fazer alguns milhares deles como forma de ‘expurgá-los’ do meu repertório”.

Renato Valle aprofunda, então, uma série de estudos, tamanhos e montagens distintas sobre o tema. Até o tamanho diminuto, de 5x5 centímetros, prevalecer. Quando, em 2002, é divulgado um edital para bolsas de pesquisa e criação dentro da programação do 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, Renato se propôs a um projeto de expurgo. “Uma verdadeira penitência”: realizar uma série de cinco mil (!) desenhos sobre, ou a partir de, ex-votos. Aprovado pelo edital, o projeto se chamava Santa Quitéria, nome de uma antiga capela de peregrinações nos arredores de Garanhuns, cidade de gados, couro e enorme produção leiteira, no Agreste de Pernambuco.

ORATÓRIO COM COCO VERDE 1987
Óleo sobre tela
55 x 46 cm





Mas o investimento se tornava decepção. “Achava eu que um ambiente como aquele serviria como estímulo para o trabalho, mas o efeito foi oposto”.







CRUCIFIXO I 1998
Grafite sobre papel
48,2 x 180,8 cm








CRUCIFIXO III 1998
Grafite sobre papel 
86,7 x 186 cm



Católico desde sua anexação violenta ao Ocidente como colônia portuguesa nesta margem do Atlântico, o Brasil se tornou viável ao projeto colonialista tanto pelo massapê úmido da cana-de-açúcar, como pelo empenho militante da Santa Igreja em promover sua cruzada nos trópicos. Um catolicismo tórrido e bronzeado, capaz de gerar uma ampla cultura material da fé propalada pelo mundo ibérico. No Nordeste do Brasil, objetos votivos são pedra de assento da fé popular brasileira.
CRUCIFIXO II 1998
Grafite sobre papel
30,4 x 183,3 cm





O EX-VOTO FUMA UM CIGARRINHO 1989
Pastel seco sobre papel
68 x 48 cm



O EX-VOTO TOMA UM CAFEZINHO 1989
Pastel seco sobre papel
68 x 48 cm
É o que Renato Valle encontra ao peregrinar para o Santuário de Santa Quitéria de Frexeiras, uma pequena igreja como satélite no sítio localizado no município de São João, antigo distrito de Garanhuns, propriedade de uma família de imigrantes portugueses que, há mais de 300 anos, ali fixaram uma imagem da santa, a quem se atribui a proteção aos angustiados e deprimidos. Com a capela, a crença nos milagres de recuperação e cura deu início às romarias. Peregrinações, aliás, nem sempre sob bençãos plenas da representação local da igreja em função dos excessos mundanos (bebedeiras, brigas, eventual prostituição) em meio às manifestações de fé.






EX-VOTO 2 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO I 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO 4 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO 5 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm

EX-VOTO 7 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO 3 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO 8 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm



EX-VOTO 6 1998
Grafite sobre papel
24 x 22 cm
Com o projeto de pesquisa aprovado, o artista encampa o programa de desenvolver sua residência em Santa Quitéria. Etnograficamente, estudar os ex-votos em lugar que “fossem vivenciados com fé e verdade”. Encontra as cenas esperadas de manifestação da fidúcia popular. Fiéis rastejando de joelhos, gestos talhados em súplicas e graças. Comércios de toda a sorte de talismãs e cacarecos. Santinhos e escapulários. Crianças com suas famílias se alimentando de restos pelo chão mais lamacento que de costume, o barro viscoso devido às chuvas temporãs. Encontra também o que não espera: a fé em seu reverso. Do mezanino dentro do templo de onde tudo via em volta, percebeu que, depois de depositados em promessa, os ex-votos eram retirados do altar para serem, de novo, depositados nas bancas da própria igreja. Desprezados como depositários recentes da fé para, reabilitados, serem reapresentados como produtos. Um ciclo contínuo de reciclagem da devoção.






DIÁRIOS DE VOTOS E EX-VOTOS (SELEÇÃO) 2003-2005
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)


Criei uma expectativa grande e caí no desencanto. Aquilo parecia coisa da Idade Média. Perdi o interesse. A relação com o ex-voto, ali, era outra coisa. Presenciei miséria e exploração da fé. O Diário de votos e ex-votos traduziria essas duas experiências humanas: drama e esperança


A revolta plasmada sobre a exploração da fé de gente humilde e crédula paralisa a capacidade de produção da série. São cerca de dois meses sem rabiscar qualquer traço. As cenas, contudo, lhe tumultuavam a memória. Nutriam o desejo de expurgo dos ex-votos do pensamento arranhado. Depois do hiato traumático na produção o projeto virava o Diário de votos e ex-votos e a série Cristos anônimos.

A pesquisa iniciada pelo interesse escultórico em ex-votos de madeira ganhava desdobramento como diário pessoal. Recobrado o impulso, tipos diferentes de grafites, palitos de churrasco para o desenho em baixo relevo, variação entre linhas mais simples e traços complexos, contrastes de luz e sombras haviam já preenchido cerca de quatro mil desenhos com variações de ex-votos desde as fases anteriores do trabalho.





CRISTOS ANÔNIMOS I 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS II 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS III 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS IV 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS V 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS VI 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS VII 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS VIII 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm





CRISTOS ANÔNIMOS IX 2004
Impressão a jato de tinta
45 x 28,27cm






Tratados em volumetria que faz os objetos saltarem da superfície planar para o real - uma das constâncias no traço do artista - os objetos votivos apareciam em suas variações recorrentes na fé popular do Nordeste: bustos, cabeças, pés, mãos e genitálias purgados para a saúde pela devoção. Pequenos totens em dimensões mais que materiais, fenomenológicas. A exaustão técnica no limite da consternação pessoal até que, outra vez, a experiência vivida se lhe impôs.





DIÁRIOS DE VOTOS E EX-VOTOS (SELEÇÃO) 2003-2005
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos, 5 x 5 cm (cada)






No meio do percurso, Renato Valle encontra uma página do Ministério da Justiça sobre crianças desaparecidas. Desde a primeira linha da leitura, já lhe parecia impossível negligenciar as revelações. Investido de expediente investigativo próprio, lança mãos de recursos jornalísticos. Imprimia os relatos, observava as feições de infantes assassinados em processos de pesada crueldade. Voltar já lhe era impossível. Cada relato lhe parecia um pedido incontornável de socorro e de escritura da face.

Em suas diligências, o artista depara-se com a história de uma menina morta na periferia do município de Paulista. Estrangulada pelo ex-namorado da irmã como vingança pelo término do relacionamento. Nos autos do Ministério da Justiça, encontra a foto de outra garota. Fornecida pela família, era um antigo retrato amassado. Perturbava-lhe o registro: como uma criança, um ente em crescimento, havia sido tão brutalmente assassinada e a única averbação visual de seu rosto estava guardado como papel de embrulhar prego, amarrotado, coisa qualquer numa gaveta esquecida? Silenciosamente, o artista assume o compromisso de devolver ao público o rosto dessas infâncias trucidadas.









DIÁRIOS DE VOTOS E EX-VOTOS (SELEÇÃO) 2003-2005
Grafite sobre Papel 
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)





No ano de 2003, Renato Valle passa a construir o enorme painel composto de cinco mil diminutos desenhos – 25 centímetros quadrados cada um.

Além das cabeças e bustos mais claramente associados aos ex-votos, o conjunto de desenhos expunha uma fase mais cruelmente realista com os rostos, reproduzidos ou fabulados, do infanticídio brasileiro. Avesso a uma arte explicitamente engajada a qualquer movimento, sua obra, inegavelmente, expurga o ativismo inevitável. Ali estão os rostos desses símbolos concretos da diáspora infante e, num exercício maior de quem vai ao inferno sem medo de enxofre, esboços dos rostos desses algozes. Vários deles, numa recorrência à literatura espírita, retratados como ovóides - criaturas de espírito impreciso em corpos ausentes.




DIÁRIOS DE VOTOS E EX-VOTOS 2017
Galeria Janete Costa, Recife-PE






Na repetição esquemática acionada como reforço retórico, as figuras se estruturam em linhas e colunas num monumental painel de um incontornável estremecimento visual. De longe, uma agregação de contrastes e volumes entre claro e escuro. Ao nos aproximarmos, percebemos a série de figurações, como as diminutas pinturas de guerra de Goya, cujos rostos encerram, por si, narrativas desafiantes do verbo.

As faces dessas crianças são divididas em dois grandes tombos: “Crianças não identificadas” e “Crianças desaparecidas”. No conjunto de cinco mil desenhos, não chegam a 5% do todo. São 243 retratos de crianças. Desaparecidas ou assassinadas, prefácios visuais a impor ritmo emocional à série e, sobretudo, a imagética de um projeto civilizatório cadavérico. “A exposição dessa obra colossal, exposta em várias cidades brasileiras, implica em metros e metros de parede, perfazendo um desenho mural, um painel gigantesco, fundado na dor e que engolfa o corpo que se coloca diante dele”, observa Agnaldo Farias (2004. p. 92), professor da Universidade de São Paulo e curador atento à produção de Valle.






Esta fase de obras se completa com variações de figuras de Cristo, estrategicamente, em faces ou corpos abertos em cruz, dispostos em diagramas, os “Cristos anônimos”.





DIÁRIOS DE VOTOS
E EX-VOTOS (SELEÇÃO)
2003-2005
Grafite sobre Papel
Políptico: 5 mil desenhos,
5 x 5 cm (cada)




Bem antes do projeto, eu havia começado a fazer esses desenhos num formato diferente. Era de 4,5 por 3 cm; depois, 9 por 9 cm. Depois, passei a fazer outros em formatos maiores e montá-los em madeiras cortadas na forma de cruz. O conjunto de desenhos montado naquele tipo de suporte era como se cada grupo ou multidão carregasse sua cruz. Foram três montagens e, com desenhos e suportes de dimensões diferentes. No início, o foco era só os ex-votos. Pensava nas pessoas comuns, aqueles que constroem suas vidas e realizam as coisas anonimamente, a gente simples, explorada, dos sofredores que carregam suas cruzes e que não conhecemos ou que ignoramos conhecer. Porém estão vivendo e, por mais que sejam desprezados, têm seu espaço no mundo, mesmo que na marra. Chamava esses trabalhos de Cristos anônimos





Entre cruzes, cristos e ex-votos estão chaves para o entendimento posterior de Renato Valle e de uma obra que não poderia inscrever-se na tradição da identidade tão cara ao modernismo pernambucano de longa duração. Sua obra não se filia a regionalismos, embora tome partido de seus extratos e circunstâncias. Não atua naquilo que se propõe a ser visto como simetria acima da história. As narrativas deste artista visual se alimentam justamente das frestas dinâmicas da realidade. Por meio de sua religiosidade, o corpo quase desarmônico da sociedade expõe as perversas dimensões políticas.

Diário de votos e ex-votos e Cristos anônimos, assim, marcam um divisor de correntes caudalosas na trajetória de Renato - seu impacto retira o desenho do âmbito de linguagens marginalizadas no País. A seu modo, uma série que o inscreve como anti civilizatório contemporâneo no panorama das artes brasileiras.

Nos termos de Norbert Elias, civilização seria uma ideia aparelhada para o Ocidente impor às noções os conceitos reguladores que tem de si. Isto é, conceituar o mundo de acordo com seus parâmetros, estabelecendo hierarquias entre bom e ruim, elegível e banível, público e privado. Entre o que deve viver e o que deve morrer. O comportamento, a etiqueta e a religião, em cruzadas de várias flechas, como corpus ideais para a imposição violenta da autoproclamada civilização. Renato Valle faz a operação inversa: a partir dos campos da política e da religião, sua obra se propõe “anticivilizadora” ao expor o sangue coagulado sob os azulejos. Do tensionamento permanente com o mundo em suas dimensões, Renato Valle ergue uma obra de sussurros gritados pela inversão do conceito.








DIÁRIOS DE VOTOS E EX-VOTOS 2017
Galeria Janete Costa, Recife-PE



CRISTOS ANÔNIMOS 2017
Galeria Janete Costa, Recife-PE



DIÁRIOS DE VOTOS E EX-VOTOS 2017
Galeria Janete Costa, Recife-PE






Não gosto dessa história de arte engajada. Prefiro refletir no trabalho minhas experiências e vivências do que me engajar em algum movimento social e usá-lo para isso. O que gera um ex-voto é o drama de alguém enfermo, moribundo, desaparecido, prostituído, seja vivido por uma criança ou um idoso. O ex-voto é uma figura dramática




EX-VOTO CABEÇA CARECA 2024
Óleo sobre tela
80 x 60 cm



EX-VOTO CABEÇA CARECA 2025
Óleo sobre tela
100 x 80 cm





EX-VOTO DE MULHER 2024
Óleo sobre tela
80 x 60 cm




EX-VOTO MÃO GIRANDO 2024
Óleo sobre tela
80 x 60 cm

EX-VOTO CORAÇÃO 2024
Óleo sobre tela
80 x 60 cm



EX-VOTO CORAÇÃO 2025
Óleo sobre tela
100 x 80 cm




EX-VOTO HOMEM 2024
Óleo sobre tela
80 x 60 cm




EX-VOTO PÉ DE PERFIL 2024
Óleo sobre tela
80 x 60 cm







Só que, nos anos 1980, comecei a me interessar muito mais pelo aspecto plástico do ex-voto. Quando iniciei esse projeto, fui me dando conta de que minha ligação com o objeto ia muito além das questões estéticas. No decorrer do trabalho, isso foi ficando cada vez mais claro e, além disso, o ex-voto era algo recorrente na minha produção. Isso me deixava intrigado. Quis fazer uma coisa exaustiva, como que para exorcizar os ex-votos da minha vida, mas não houve jeito. Fui me aprofundando cada vez mais nessas questões. Inicialmente, o projeto tinha o nome de Santa Quitéria, porque queria desenvolvê-lo num santuário. Achava que o ambiente seria ideal para realizar os cinco mil desenhos. Depois que percebi a sua importância como símbolo em minha vida, passei a usá-lo como um “exercício de religiosidade”, o motivo não era a angústia, mas o alívio de uma angústia


Seus desenhos, objetos ou pinceladas arranham o monolito genocida da ideia de progresso civilizatório. Embora prenhe do desejo de mudança do corpo social em que se desenvolve, a arte de Renato não se embriaga da consciência infantil de que irá efetivamente modificar o tecido. Tem mesmo a compreensão de certa inutilidade do objeto artístico, de sua efetiva incapacidade de mudança pontual nos sistemas regulatórios de desigualdades. Nutre-se, de maneira menos ilusória, da certeza de que, reunidas em discurso numa exposição ou publicação, suas obras podem alterar a sensibilidade de 300 ou 500 pessoas por elas atravessadas.

Em Renato Valle, a fé assume uma incontornável superfície política. Porque não apenas metafísica. Mas observadora das fraturas do tecido social em que se faz. Suas crianças, aqui, evocam a necropolítica anunciada por Foucault ou Achille Mbembe como partes de um estado réprobo, gerador de mecanismos por vezes sutis em distinguir os que devem morrer dos que podem viver. Uma sociedade em demissão, politicamente, de seus projetos de fé.








EX-VOTO PÉ 2025
Óleo sobre tela
100 x 80 cm















RECIFE.NOV.2025
acessibilidade
+
++
+++
livros vídeos expediente
VO
   TO
         S
  RENATO VALLE & BRUNO ALBERTIM  
    RELIGIOSIDADE E POLÍTICA      

  capítulos: